A pandemia segue em expansão no Brasil. Atingimos mais de três mil mortes diárias no país. Entre 15 e 21 de março, cerca de 60 mil pessoas morreram em todo o mundo, devido à Covid-19; 15 mil mortos eram brasileiros. Isso significa que 25% do total de mortes ocorridas neste período no planeta estavam no Brasil, ainda que nosso país concentre somente 2,7% da população mundial.

Um ano se passou desde os primeiros casos registrados no Brasil. Ao longo desse tempo, o conhecimento científico e as experiências internacionais mostraram que as medidas comprovadas para controlar a pandemia são as estratégias não farmacológicas – utilização correta de máscaras efetivas, higienização das mãos, capacidade de testagem e rastreamento, distanciamento e isolamento social – combinadas à ampla cobertura vacinal.

Entretanto, tornou-se rotina a divulgação de imagens e mesmo discursos que desestimulam essas medidas, até mesmo por parte de autoridades cujo trabalho deveria ser o de proteger a população. De forma geral, essa descrença se articula com a relativização dos danos decorrentes da pandemia e com a proposição de tratamentos farmacológicos ineficazes já avaliados pelo método científico apropriado. Além de incentivar o descrédito à ciência, tais atitudes aumentaram a transmissão da Covid-19, contribuindo para o colapso do sistema de saúde.

Apesar dos diversos alertas apresentados por epidemiologistas, sanitaristas e pela comunidade científica (por exemplo, em “Mensagem de Manaus a Porto Alegre”, em janeiro de 2021), especialmente a partir do início deste ano, em nenhum momento o governo do estado do Rio Grande do Sul e principalmente o do município de Porto Alegre propuseram ações que propiciassem aumento suficiente dos níveis de isolamento para conter a pandemia. Pelo contrário, mesmo diante do colapso do sistema de saúde e da ameaça de esgotar a disponibilidade de recursos humanos, medicamentos e procedimentos básicos para a sobrevivência de pacientes críticos com Covid-19, o prefeito da capital segue pressionando para ampliar a circulação de pessoas, adotando medicamentos ineficazes, divulgando que o comércio estaria “imune” à transmissão, contrapondo economia e saúde e ampliando o colapso social decorrente da pandemia.

A Covid-19 é uma “Sindemia”, já que exacerba o impacto de outros agravos e aprofunda as desigualdades sociais; acarreta o adoecimento de famílias inteiras, a perda da qualidade vida e a redução da expectativa de vida. No estado já são mais de 800 mil casos, duplicação de mortes em 10 dias, cerca de 300 mortes diárias, espera por leitos de UTI e quase 20 mil mortes acumuladas – elementos que indicam o colapso social.

A resposta foi ambígua, não apenas pela inexistência de coordenação nacional, mas pela influência de setores empresariais nos governos locais – o que foi explicitado pelo governador do estado e pelo prefeito de Porto Alegre –, em detrimento de recomendações técnicas e evidências científicas. Efetivamente, representações de trabalhadores do comércio e do transporte público, profissionais de saúde e hospitais não foram consideradas com a mesma força que representantes empresariais na tomada de decisão.

A capacidade instalada no estado para identificar e monitorar a expansão de variantes é muito baixa. O SARS-CoV-2 gera variantes na presença de altas taxas de replicação e desde dezembro do ano passado, a variante P.1 já estava circulando na região metropolitana de Porto Alegre. Estudo genômico indicou que a P.1 foi responsável por 24 de 27 casos de Covid-19 em pacientes hospitalizados em fevereiro deste ano. Tal tendência de expansão vem sendo observada no território nacional. Diante da maior transmissibilidade da variante, será preciso realizar Vigilância Molecular e potencializar a combinação das medidas de prevenção, principalmente com altos níveis de isolamento social.

Somente no dia 27 de fevereiro de 2021, um ano após o aparecimento da Covid-19 no estado, o governo adotou, tardiamente, a “bandeira preta”, medida insuficiente para enfrentar a magnitude do cenário de colapso. Monitoramento das redes de telefonia móvel mostra que a adoção dos protocolos previstos na “bandeira preta” não ocasionou mudança significativa no nível de isolamento social. Em fevereiro, a média de isolamento social foi de 37% e desde o início da vigência da bandeira preta ela permanece em 39%, portanto muito inferior aos 60-70% necessários para desacelerar a epidemia.

Lockdown

Países que estavam em risco de esgotamento do sistema de saúde, ou até mesmo vivendo o seu colapso, intensificaram o distanciamento e o isolamento social adotando lockdown. No início de março de 2020, a Itália apresentava marcada expansão da epidemia, refletida na taxa média de contágio da doença (Rt) de 2.0, que representa que cada 100 pessoas infectadas transmitem para outras 200 pessoas. Após três semanas de lockdown, a Rt declinou para 0.77 e permaneceu inferior a 1.0 em 84% do país, representando desaceleração de 62% na transmissão da doença.

Na mesma época, no estado norte-americano de Delaware, a combinação de medidas como a determinação para a população permanecer em casa, a fiscalização do uso de máscaras, a testagem e o rastreamento de contatos, reduziu o número de hospitalizações em 88% e a mortalidade em 100%.

A França, diante do risco da segunda onda, promoveu, em outubro do ano passado, toque de recolher noturno que atingiu cerca de 28% da população. Teve duração de oito semanas e ocasionou a redução na taxa de transmissão comunitária e de hospitalizações. Desde o último dia 20, aquele país decretou novo período de isolamento máximo em diversas regiões. O Reino Unido recentemente desacelerou a circulação da variante britânica e o número de casos e mortes, com adoção de lockdown durante seis semanas. Atualmente, o país tem menos de 30 mortes diárias.

Uma revisão recente analisou dados de 37 países europeus, mostrando que a adoção precoce de lockdown foi associada à menor mortalidade pela Covid-19, comparando-se com países que o adotaram tardiamente. Nessa mesma análise, a Suécia – cujo governo reconheceu que deveria ter adotado medidas mais intensas de isolamento – teve maior mortalidade em comparação com países que adotaram lockdown.

No Brasil, recentemente, o município de Araraquara reduziu em 50% os novos casos com a adoção de lockdown de 10 dias, e o município de Ribeirão Preto acaba de declarar também o isolamento extremo.

O termo lockdown remete a “confinamento”, uma imagem negativa em nosso imaginário. Entretanto, no contexto da pandemia, essa medida evita mortes e reduz prejuízos à economia quando se comparam países que o adotaram com aqueles que não intervieram na circulação de pessoas, mantendo assim baixas taxas de isolamento social. Já existem evidências de que controlar a circulação viral com maior intensidade e evitar a crise sanitária são ações que proporcionam recuperação econômica mais rápida.

Doentes com Covid-19 grave demandam longa permanência sob terapia intensiva, com custos diários que podem variar de R$ 3.300 até R$ 30 mil em algumas situações. Assim, a hospitalização em UTI de um único paciente, por apenas um dia, com custo presumido de R$ 6 mil, possibilitaria o isolamento para 10 famílias de baixa renda durante um mês inteiro, considerando um auxílio emergencial de R$ 600,00. Nesse sentido, o fornecimento de recursos como máscaras adequadas, renda, cestas básicas e apoio a empresas provavelmente seria uma intervenção custo-efetiva em relação aos custos decorrentes do tratamento das complicações da doença.

É surpreendente que, diante do colapso do sistema de saúde e da expansão da nova linhagem P1, o governo do estado tenha decidido pelo retorno da cogestão e a consequente reabertura das atividades não essenciais no estado. Segundo o governo estadual, a Rt teria caído para 1.4, o que significa que cada 100 pessoas transmitem para outras 140 pessoas e representa expansão da pandemia – é internacionalmente aceito que, para o retorno a atividades presenciais, seria preciso que a Rt permanecesse menor que 0.7 durante duas a três semanas, de modo a refletir na contenção da pandemia.

Uma modelagem matemática indica que, caso o Rio Grande do Sul adotasse lockdown com isolamento social de 60% – níveis atingidos em março do ano passado – durante um período de 14 dias, mais de 400 mil novas transmissões seriam prevenidas e pelo menos oito mil mortes seriam evitadas. Em Porto Alegre, seriam prevenidos mais de 45.000 casos, e pelo menos 900 mortes seriam evitadas.

Simultaneamente à intensificação do isolamento social será preciso desenvolver a combinação das estratégias não farmacológicas, com produção e distribuição de máscaras adequadas, campanhas de prevenção, ampliação de testagem com PCR e rastreamento de casos. Sobretudo, será preciso criar condições objetivas para lockdown durante pelo menos duas semanas. Tais condições incluem a garantia de renda básica universal e o desenvolvimento de estratégias de proteção como, por exemplo, linhas de crédito, especialmente para micro, pequenas e médias empresas.

Não é aceitável apenas aguardar o avanço da cobertura vacinal, como a “bala mágica”, pois sua efetividade diminui diante da ampla circulação viral. Além disso, a exposição à doença e o risco de morte são desiguais na sociedade, e o colapso da saúde precisa ser imediatamente enfrentado. Como mencionado, aqueles que tomam decisões não produziram as condições necessárias para o lockdown. Paradoxalmente, alegam que não é possível implementá-lo devido à ausência de condições objetivas.

É preciso enfrentar a hipocrisia do ciclo retórico e pressionar por renda em caráter emergencial, tendo como prioridade prevenir mortes em lugar de naturalizar o caos e atribuir sua causa apenas à nova linhagem que hoje circula. Na realidade, a nova linhagem surgiu pela ausência de contenção da circulação viral, e sua expansão está entre as mais fortes razões para determinar lockdown. Diversos países mostram que é possível enfrentar a Covid-19, e para isso será preciso desenvolver políticas que protejam a vida e amenizem a carga social da doença, propiciando assim a recuperação econômica.

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NR: Diante da gravidade da situação no estado, um grupo inicial de 20 pessoas, que hoje já conta com o apoio de mais de três mil, apresentou ao Ministério Público Estadual e à Defensoria Pública o pedido que “ingressem com Ações Civis Públicas cabíveis para obrigar os prefeitos de Alvorada, Cachoeirinha, Canoas, Eldorado do Sul, Esteio, Gravataí, Guaíba, Novo Hamburgo, Porto Alegre, São Leopoldo, Sapucaia do Sul e Viamão a adotarem as medidas necessárias para o lockdown”. Já se passou quase um mês e nada foi feito. Enquanto isto, os hospitais estão em colapso e as pessoas morrem.