Renata acordou risonha. Engenhocas na cozinha, programadas e alimentadas de ingredientes na noite anterior, anunciavam com bips café e pão fresquinhos. Bem na hora em que desligou o secador de cabelo. Demorou-se a levar à boca o pão só pra contemplar a manteiga derretendo na fatia. O sol brilhava forte na manhã fria compondo um cenário feliz como o de um comercial de margarina.
Ainda sentindo o gostinho bom da pasta de dentes, ligou o rádio do carro. Propagandas animadas por trilhas sonoras pobres e notícias tristes. Ouviu a contabilidade de mortos pela pandemia. Discussões entre gente que dizia que o governo fazia tudo certo e gente que dizia que o governo fazia tudo errado. Todos irritados e irritantes.
Entrou no elevador amplo com desconfiança sanitária. Reencontrou colegas de trabalho sem saber como cumprimentar ou o que significava não ser cumprimentada de perto. Teve vontade de abraçar alguém.
Almoçou na rua. Ar livre. Com barulho e poeira. De longe, via um noticiário na TV em que as imagens eram desencontradas das legendas em closed caption. Um apresentador entre o cômico e o dramático mostrava assassinatos na periferia e fazia cara de indignado enquanto imagens indigestas de corpos ensanguentados e gente desesperada se repetiam.
Tentou fazer sugestões sobre os números e gráficos para o executivo jovem de cabelos milimetricamente penteados e untados com pasta. Ele ouviu atento aos seus peitos com um olhar de lobo. Só que sem a ingenuidade dos lobos.
Pensou em comer alguma coisa na cafeteria da Lorena. Na mesa ao lado, entre a tristeza e o constrangimento, um marido ouvia a esposa dizer com voz dura e alta que não o queria mais. O café chegou frio à mesa.
No trânsito, um taxista se sentiu ofendido pelo jeito de uma mulher dirigir. Foi até ela bufando e pisando duro. Apontando o dedo como se fosse uma britadeira ameaçando a cabeça da moça. Disparava xingamentos contra todas as mulheres. Pessoas buzinavam, irritadas pelo trânsito que não transitava.
Chegou cansada como sempre. Como sempre, tomou banho e comeu uma besteira congelada com gosto de fábrica. Ligou a TV. Como sempre, absurdos políticos.
Pensou em como na sua vida tudo é como sempre. E sempre é vazio. Procurou entre o 2784 amigos do Facebook alguém com quem conversar. Mandou uma mensagem para um ex-namorado e uma ex-vizinha. Depois de duas horas sem respostas, desistiu.
Pensou em sair, mas não tinha para onde ir. Tomou uma cerveja e zapeou a TV à esmo. Deixou num canal qualquer só pra fazer barulho. Abriu outra cerveja sem saber porque estava chorando.
Alimentou as engenhocas da cozinha e tomou dois comprimidos para dormir. Colocou um travesseiro entre as pernas, como se fosse uma coxa excitante e abraçou outro como se fosse urso de pelúcia.
Aguardou o sono cheia de esperanças de que a manhã seguinte pudesse ser feliz como um comercial de margarina.