Como afastar do poder um presidente da República com transtornos mentais, que já não tenha mais capacidade de permanecer à frente do executivo federal? Como fazer isso sem desrespeitar a Constituição Federal? Assim começava o artigo de Rodrigo Mascarenhas publicado no Terapia Política, em abril de 2020. O autor parecia suspeitar que haveria um agravamento do quadro psíquico do Presidente brasileiro. Está cada vez mais evidente o fracasso do governo e as pesquisas de opinião mostram uma crescente rejeição à sua postura. Emparedado, ele dá sinais preocupantes de desequilíbrios psicológicos. Neste último dia 09 de julho, o presidente Bolsonaro ficou pouco tempo no jantar promovido pela Vinícula Miolo, em Bento Gonçalves. Retirou-se, depois de ter mais uma crise de soluços. Olhos esbugalhados, risos nervosos e descontrolados, destemperos verbais e ameaças são alguns dos outros indícios. Gilmar Mendes percebeu os sinais, e numa entrevista, o ministro do Supremo Tribunal Federal compara Bolsonaro a “Napoleão de hospício” e recomendou “Tratar Napoleão como Napoleão.” (Diário do Centro do Mundo) Por estas e outras, o artigo merece republicação, pois qualifica o debate sobre esta situação completamente anômala. (Eduardo Scaletsky)

Como afastar um Presidente da República mentalmente incapaz sem violar a Constituição

Por Rodrigo Mascarenhas

Como afastar do poder um Presidente da República que, pelo agravamento de transtornos mentais, já não tenha mais capacidade de permanecer à frente do executivo federal? Como fazer isso sem desrespeitar a Constituição Federal?

Bem sabe o leitor que se trata de pergunta retórica, à qual nos dedicaremos a seguir por amor à pura especulação.

A hipótese, sempre teórica, é a seguinte: durante o curso de seu mandato um Presidente da República é acometido de transtornos mentais (ou transtornos que ele já possuía se agravam) e ele não tem mais capacidade de permanecer à frente do executivo federal. Ministros, altas autoridades da República e a sociedade em geral reconhecem o agravamento do quadro, conseguem evitar ou neutralizar decisões mais perigosas, mas o presidente em questão (com o apoio de alguns apoiadores mais fanáticos) nega a existência ou a gravidade do transtorno (o que é comum em certas patologias) e, portanto, se recusa a reconhecer esta situação e a deixar o poder.

Ou seja, a hipótese é de afastamento de Presidente da República, contra a sua vontade, não por que tenha cometido um crime, mas sim pela incapacidade mental. O que fazer?

Não há resposta explícita na Constituição Brasileira. A única pista se encontra no artigo 79, segundo o qual “Substituirá o Presidente, no caso de impedimento, e suceder-lhe-á, no de vaga, o Vice-Presidente”. Este “impedimento” é uma expressão (que não se confunde com o de impeachment) que abrange toda e qualquer situação na qual o Presidente da República não pode, temporariamente, por qualquer razão, exercer o cargo. Este artigo, sem qualquer dúvida, se aplica aos casos de doença, mas nada diz – e este é o ponto – o que fazer quando o presidente se recusa a reconhecer sua situação de impedimento, embora sirva de fundamento para legitimar constitucionalmente a busca por uma solução.

Pois bem, outras constituições trataram explicitamente da hipótese, a começar pela 1ª Constituição do Império (de 1824), cujo artigo 126 autorizava o afastamento do Imperador quando este “por causa física ou moral evidentemente reconhecida pela pluralidade de cada uma das câmaras da assembleia, se impossibilitar para governar”. Era o reconhecimento de que mesmo Imperadores poderiam falhar.

Mas a Constituição em vigor mais conhecida que trata do assunto é a Constituição dos E.U.A., que o incluiu em uma emenda (a 25ª) conhecida por ter permitido a chegada de Gerald Ford à Presidência, ao dar ao presidente dos E.U.A. o poder para nomear um novo vice-presidente (a ser confirmado pelo voto da maioria das duas casas do Congresso) no caso do cargo (de vice) ficar vago. Na ficção – e também falando de psicopatas – foi essa emenda que permitiu a chegada ao poder de Frank Underwood, personagem de Kevin Spacey no seriado House of Cards, que fez muito sucesso no Brasil até nos darmos conta de que nossa realidade era mais virulenta do que a ficção poderia sonhar.

Pois bem, naquilo que nos interessa o § 3º da Emenda 25 estabelece o procedimento para que o Presidente se afaste do poder por iniciativa própria, o que se dá mediante simples declaração sua de que está incapaz de exercer suas atribuições declaração que deve ser entregue ao Presidente (Speaker) da Câmara dos Deputados e ao Vice-Presidente do Senado (o Presidente do Senado, nos E.U.A. é o próprio Vice-Presidente da República que assumirá o cargo). Quando a incapacidade tiver terminado basta ao Presidente entregar declarações às mesmas autoridades comunicando o fato e ele reassumirá o cargo.

Mas essa declaração de incapacidade também pode ser de iniciativa do vice-presidente, nos casos, presume-se, do Presidente estar inconsciente ou se opor à iniciativa. Mas a Emenda exige que a declaração do vice-presidente seja subscrita pela maioria dos ministros (ou pela maioria de outra instituição que vier a ser escolhida por lei) o que é bastante engenhoso, pois o fato dos ministros terem sido escolhidos pelo presidente diminui as chances de uso do mecanismo para o afastamento do presidente que não esteja de fato incapacitado, ou seja, para um golpe.

Mas a Emenda 25 não para aí, ela prevê a hipótese do presidente se opor à iniciativa do seu vice. Nesse caso, ele transmite uma declaração (às mesmas autoridades) contestando a declaração do vice (não estou doido não!) e reassume o lugar. Ah, mas o vice pode dobrar a aposta (está doido sim!), apresentando nova declaração (com a mesma maioria de ministros) no prazo de 4 dias do recebimento da última declaração do Presidente. Neste último caso caberá ao Congresso decidir a questão em caráter final, só podendo afastar o presidente pelo voto de dois terços dos membros de ambas as Casas.

Em suma, trata-se de procedimento cuidadoso e politicamente equilibrado. Um presidente, se não houver resistência do próprio, pode ser afastado por seu vice-presidente acompanhado da maioria dos ministros que escolheu. Se houver resistência do presidente, o que significa dúvida razoável sobre a existência ou não de base fática (a doença) para o afastamento, este só prevalece com apoio de ampla maioria do congresso, a mesma maioria que é requerida para o caso de impeachment. A comparação com a Constituição dos E.U.A. tem uma relevância especial para nós. É que o impeachment previsto na Constituição Brasileira é claramente inspirado naquele previsto na Constituição dos E.U.A. Há diferenças relevantes (lá o Presidente não é afastado mesmo após a acusação ser aprovada pela Câmara e recebida pelo Senado como acontece aqui), mas as semelhanças sem dúvida são enormes.

Outra Constituição que trata do assunto é a Portuguesa, que prevê a competência do Tribunal Constitucional para “verificar a morte e declarar a impossibilidade física permanente do Presidente da República, bem como verificar os impedimentos temporários do exercício das suas funções” (artigo 223, 2 “a”), sem especificar o procedimento para tanto.

No Brasil, nos parece haver três soluções defensáveis: aplicar o processo de impeachment strictu sensu, aplicar o processo de impeachment com adaptações ou fazer algo próximo ao que prevê a Constituição dos Estados Unidos.

Vamos tentar explorar cada uma delas, ressaltando que o ideal é que sua adoção seja objeto de prévia regulamentação, seja por lei, seja, ao menos, por resolução do Congresso Nacional.

Todas as soluções têm pelo menos dois pontos em comum: primeiro reconhecem que a teoria da completude do ordenamento jurídico parte do pressuposto de que deve haver uma solução para um problema que, caso se concretize, é evidentemente grave para não ter nenhuma solução constitucional (o que, se não legitima por si só qualquer das soluções sugeridas, certamente legitima a sua busca). O segundo ponto é o raciocínio segundo o qual, na ausência de solução explícita da Constituição quanto ao órgão que decreta o afastamento do presidente contra a sua vontade por razão de doença, devemos reconhecer, por analogia que apenas o órgão expressamente incumbido de decretar seu afastamento também contra a sua vontade, mas pelo cometimento de crime de responsabilidade, estaria legitimado a fazê-lo (independentemente do procedimento e dos requisitos materiais).

Ambas soluções a favor da aplicação do impeachment são as mais conservadoras do ponto de vista jurídico. Reconhecem que na ausência de soluça explícita da Constituição para o afastamento do presidente contra a sua vontade por razão de doença, deve ser utilizada – por analogia – a solução explícita da Constituição para o afastamento do presidente contra a sua vontade por cometimento de crime de responsabilidade. Na primeira versão dessa solução o procedimento de impeachment seria aplicado de forma estrita, o que pressuporia a efetiva ocorrência de um crime de responsabilidade. O problema teórico (não é o caso atual) é que pode não ter ocorrido nenhum crime de responsabilidade e pode ser que não queiram simplesmente inventar um (ou dois, como em tempos recentes). Nesse caso, ou o afastamento-impeachment seria inviável (por ausência de crime) ou seria aplicado de forma inconstitucional (pela mesma ausência). Outra opção seria aplicar todo o procedimento de impeachment (ainda por analogia) mas substituindo a necessidade de imputação de um crime de responsabilidade pela imputação do estado de insanidade mental. A fase de prova seria mantida, permitindo inclusive a prova pericial (o exame de uma junta médica, por exemplo). A vantagem dessa opção é dar ao presidente acusado de demente uma vasta oportunidade de provar sua sanidade. Ademais, para aqueles que sustentam o caráter eminentemente político do impeachment (dentre os quais não nos incluímos) e que sustentam, portanto, que, desde que respeitado o procedimento, a decisão da Câmara e do Senado é inteiramente livre, não haveria grandes mudanças.

A terceira opção seria uma solução “à americana”. Seu fundamento jurídico leva mais ao extremo (ou mais a sério) a tese da necessária completude do ordenamento jurídico, para dizer que as outras soluções – ao impor o procedimento integral de impeachment que pode levar meses – não são de fato soluções, sobretudo para casos de grave insanidade mental (“imaginemos” um presidente que, no enfrentamento de uma pandemia, contra a unânime opinião médica, resolvesse adotar uma política que levasse à morte milhares de pessoas). Seguindo essa linha, essa solução busca uma espécie de analogia comparativa (na ausência de solução dada por determinado sistema jurídico tratemos de buscar uma solução dada por ordenamento que seja bastante próximo ao nosso quanto ao tema). Face à ausência de base textual, seria inviável a possibilidade de afastamento do presidente por simples comunicação do vice mesmo apoiada pela maioria do ministério. Mas talvez seja defensável admitir que uma comunicação nesses moldes dirigida aos presidentes da câmara e do senado autorize o congresso a suspender o mandato presidencial desde que pelo mesmo quórum previsto para o impeachment e desde que aberta oportunidade para prévia manifestação e produção de prova pelo Presidente. Ou seja, ainda haveria um procedimento a ser observado, mas bem mais curto do que o do impeachment. Trata-se da opção mais ousada e sem dúvida arriscada, mas talvez menos perigosa do que descartá-la inteiramente, permitindo a permanência de um psicopata na Presidência por mais tempo do que um país suportaria.

Não cogitamos da opção de afastamento do Presidente por meio de decisão do Poder Judicial uma vez que, como o presidente é eleito, só um órgão também eleito, e expressamente legitimado pela Constituição para remover o presidente em situações mais graves (cometimento de crimes), seria legitimado para afastá-lo por incapacidade mental.

O ideal, obviamente, é que o problema fosse evitado, ou que fosse objeto de normas específica. Na verdade, existe uma urgente necessidade de reforma da própria lei do impeachment que é de 1950, portanto muito anterior à atual Constituição.

Mas, com ou sem norma, o afastamento de um presidente contra sua vontade por razões de saúde será sempre um risco, pela possibilidade de que se use a doença – tal como se usa o impeachment – apenas para retirar um presidente que perdeu o apoio daquilo que Ferdinand Lassalle chamava de fatores reais de poder.

Com efeito, na América Latina o impeachment e outras formas constitucionais (ou quase) de afastamento de presidentes passaram a ter uma importância que nunca tiveram, pois, como apontado por Pérez-Liñán, as elites civis latino-americanas compreenderam que os golpes militares tradicionais se tornaram, em grande medida, impraticáveis; passando então a experimentar o uso de instrumentos constitucionais para remover presidentes. Essa utilização do impeachment veio acompanhada de uma característica positiva: a queda de governos deixou de representar o restabelecimento de regimes autoritários, malgrado o mais escancarado (Fernando Lugo no Paraguai) ou mais envernizado (Dilma) caráter golpista de alguns desses processos, cuja integridade constitucional, portanto, é mais que duvidosa. Assim, a partir de 1992, diversos presidentes foram removidos do poder, seja pela consumação do impeachment, por sua ameaça, ou por alguma outra forma de crise institucional, incluindo renúncias praticamente impostas (caso do Presidente argentino Fernando De la Rúa, em 2001) e declarações de incapacidade mental (como o do Presidente do Equador Abdalá Bucaram, afastado em 1997) procedimentos nos quais o risco de golpe é talvez ainda maior. Como lembra Pérez-Liñán, as normas sobre incapacidade de presidentes “fueron concebidas como una manera de reemplazar a un presidente que, si bien estaba con vida, era incapaz de llevar a cabo sus obligaciones. Sin embargo, palabras técnicas como ‘incapacidad’ y ‘ausencia permanente’ pueden tomar significados inesperados en medio de una crisis presidencial”. (PÉREZ-LIÑÁN, Aníbal. Juicio político al presidente y nueva inestabilidad política en América Latina. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2009, p. 224).

Sempre sustentei (inclusive durante o impeachment de Dilma), que um processo de impeachment para estar de acordo com a Constituição não deveria respeitar apenas as normas procedimentais; exigia – e exige – que um presidente só fosse afastado se efetivamente tivesse praticado com dolo um ato ou fato que correspondesse a um crime de responsabilidade previamente definido. Do contrário, estaremos transformando o presidencialismo em parlamentarismo pela porta dos fundos (sem qualquer graça), desrespeitando a vontade popular expressa em dois plebiscitos. Anos após o impeachment de Dilma vários de seus algozes admitiram publicamente que sua queda se deu pelo “conjunto da obra”.

Pois bem, o problema em se admitir o afastamento de um presidente por sua loucura é que um tal precedente (mesmo que agora justificado) pode no futuro ser a nova forma de denominar o “conjunto da obra”. Como dois erros não fazem um acerto a solução a ser dada para a crise deve partir de um entendimento que possa ser aplicado a qualquer hipótese efetivamente semelhante que vier a ocorrer no futuro.

Em uma palavra: a legitimidade constitucional e política do afastamento de um presidente por uma das formas cogitadas aqui será proporcional à gravidade da patologia que ele de fato tenha. O afastamento de um presidente meramente excêntrico sob o (nesse caso) falso argumento da loucura seria um grave erro (e um golpe). Muito pior, no entanto, seria a incapacidade ou a omissão em afastar um verdadeiro psicopata.

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