Ou a aliança rebelde e o império do mal
O pensar evangélico nos constrange. Às vezes nos perguntamos, mas de onde saiu esse sujeito? De alguma caverna? Desceu da Lua e aterrizou aqui por acaso? Mas, se você já pensou em pós-modernidade e virtualização do pensamento e suas consequências éticas, sociais e políticas, está no caminho para entender esta presença que já passa de um quarto da população brasileira.
Há um verso de Nietzsche que pode nos servir de guia para pensar a religiosidade evangélica:
- “Agora celebramos, seguros da vitória comum, a festa das festas: O amigo Zaratustra chegou, o hóspede dos hóspedes! Agora o mundo ri, rasgou-se a horrível cortina, É hora do casamento entre a Luz e as Trevas…”
Nietzsche pensava a ausência de horizontes. Em Além do Bem e do Mal, ele pensa contra a modernidade: faz um libelo contra os valores da modernidade, como o sentido histórico, a objetividade científica e, logicamente, a fé numa razão autônoma. Hoje, um filósofo norte-americano percorre, sob outras condições, questionamentos idênticos aos levantados por Nietzsche: Mark C. Taylor.
Ao trabalhar a questão da virtualidade na sociedade pós-moderna, Taylor vai utilizar um conceito que já vinha sendo usado na crítica literária, a ideia de imagologia. Antes, na teoria literária, e agora na filosofia de Taylor, a identidade do sujeito não pode ser encarada como uma forma de ser plena e apriorística, mas como realidade dinâmica ou relacional, onde se cruzam questões de identidade pessoal e social, o que também se dá na virtualidade, que acaba sempre por revelar uma dimensão estrangeira, que é manifestação de um outro. Na medida em que há constante busca identitária, o confronto com este outro supõe sempre uma comparação, explícita ou implícita, e se integra naquilo que, na terminologia filosófica de Taylor, será a imagologia, estudo das representações do outro, que também pode ser entendido como virtualidade.
Essa questão, realidade e imagem, na sociedade imagológica já tinha sido analisada por psicólogos da escola piagetiana. Segundo eles, é difícil ensinar a pensar de modo lógico a um menino que está sob o bombardeio de imagens distantes da lógica, como acontece nos programas infantis. E onde até mesmo as entrevistas ao vivo fazem parte da criação de algum gênio da publicidade. A moda e o show biz, por exemplo, fazem parte desta realidade, onde o que é apresentado pelo entrevistador não tem nada a ver com a realidade da audiência ou com o próprio artista/produto, já que suas imagens sofrem uma transformação mágica para poder ser popular, ou pelo menos este é o objetivo.
Assim, antes, na modernidade, as criações virtuais eram imitações da realidade. Mas hoje, na pós-modernidade, falamos de virtualidade enquanto criação de realidades que não correspondem ao que temos no mundo imediato, quer cultural, social ou político. Por isso, como disse Nietzsche, “rasgou-se a horrível cortina, é hora do casamento entre a luz e as trevas...”.
Vivemos um momento de complexidade sem precedentes, onde as coisas mudam mais rapidamente que nossa habilidade de compreender. Diante disso, será possível distinguir entre realidade e virtualidade na comunidade imagológica evangélica?
As religiosidades evangélicas podem ser chamadas de locais de consumo e apontam para a construção imagológica de uma monarquia teocrática, onde um rei libertador governará apoiado por profetas. Nesse sentido, o capitão Jair Messias Bolsonaro encarna e sintetiza a imagologia evangélica. Mas uma estrutura não é aquilo que alguém busca, pois as religiosidades enfatizam movimento e troca. O conhecimento simbólico nas religiosidades evangélicas emerge de uma interação entre entendimento e as expressões de fé, que são filtros através dos quais é processada a informação. Se alguém pensa tais categorias como um vigamento historicamente emergente de interpretação, em constante processo de formação, deformação e reforma, estamos diante de um salto como o das tecnologias de produção e reprodução.
O movimento evangélico traduz tal rebelião: é pós-moderno, quando nega a modernidade e sua racionalidade hermenêutica, quando aceita que seu universo seja dominado pelo mercado, e quando celebra o consumo como expressão pessoal. Começamos então a ver os modos em que os evangélicos processam a experiência, onde o conhecimento pertence às pessoas, mas está em fluxo constante. Não é apenas uma questão de como pensam, é uma questão de como veem, ouvem e temem. E aí entram ethos evangélico e política, e questões como aborto, feminismo e movimentos gays, enfim, direitos civis, passam à centralidade do pensar a política. E neste ver, ouvir e temer, as mídias abrem uma percepção nova e capacidades de apercebimento. O ponto em que se faz a troca é uma questão importante. Essas redes de troca não são apenas religiosas, são culturais, políticas, sociais. Entender as religiosidades evangélicas como constituídas por redes de troca é fundamental.
No Brasil de hoje podemos falar de uma multidimensionalidade do tempo na cultura. Ora, antes, sem dúvida, o tempo deveria ser distintamente diferente para evangélicos e o restante da população, mas agora com a presença dos tempos artificiais produzidos pela tecnologia, em especial a mídia informatizada, os ritmos e tempos se interpenetram.
Assim, ao analisar o pensamento político da religiosidade evangélica no Brasil, a partir dos profetas midiáticos, podemos dizer que se deu uma ofensiva contra os direitos civis, democráticos e seculares. Os profetas dessas denominações midiáticas adotaram o discurso da crise moral e lançaram as bases para a construção de um pensar político. Assim, formataram um projeto de defesa da hierarquia, com suas desigualdades sociais, que seriam inevitáveis e naturais. Tal postura política tem como modelo imagológico a monarquia bíblica, expressa nos reinados de Davi e Salomão. Esta direita, diferente de tudo que até então se conhecia no Brasil, foi favorecida pelas oposições ao trabalhismo reformista, cresceu e virtualizou maciçamente sua presença. Normalmente, de forma apressada, chamamos tal movimento de fundamentalista.
A Reforma protestante desde os seus primeiros momentos buscou fundações. Conhecemos os princípios basilares apresentados por Lutero: a justificação pela fé, a sola scriptura, o livre exame dos textos sagrados e o sacerdócio universal dos crentes. A partir desses conceitos de liberdade surgiu um conjunto de princípios em cima do qual se levantou a teologia reformada. Tal construção foi vista como base que legitimou a expansão de uma das maiores revoluções religiosas da história ocidental. E, assim, surgiu a teologia reformada como fundamento de todos os protestantismos e também dos evangelicalismos, com seus diferentes matizes e leituras.
A utilização da expressão fundamentalista para a religiosidade evangélica brasileira não está errada, mas se torna reducionista ao prender-se aos aspectos negativos do termo – conservação, integrismo, retroação – e deixa de ver aspectos relacionais positivos que a busca por fundação implica.
Uma das questões que nos perguntamos quando pensamos a crescente força da religiosidade evangélica é se, de fato, esta religiosidade outorga sentido às massas urbanas. Consideramos que o brasileiro é pessoa potencialmente espiritual, e que essa espiritualidade tende a se expressar em diferentes formas de religiosidades. E essas religiosidades nos grandes centros brasileiros ocupam um espaço privilegiado. Ora, se a espiritualidade é a dimensão da profundidade do ethos brasileiro, na urbanidade essa busca, por várias razões, é incrementada e direcionada ao evangelicalismo. Basta ver que no Brasil urbano a comunidade evangélica cresceu 61,45% em dez anos (IBGE, 2012). Assim, se a população brasileira urbana é religiosa, essa religiosidade foi catalisada pelo maciço processo de evangelização dos últimos setenta anos.
A espiritualidade traduzida nas religiosidades das cidades brasileiras está presente em todas as ações do ethos brasileiro, na cultura, na educação, na ética e na política. Por isso, cada vez mais expoentes das comunidades se pronunciam publicamente sobre questões que antes pertenciam estritamente a esfera civil não religiosa.
Em razão disso podemos dizer que enquanto fenômeno urbano a religiosidade evangélica é, dialeticamente, fator de agregação e desagregação. Podemos, até explicitar essa dualidade com alguns exemplos. Durante a redemocratização brasileira, nos anos pós-ditadura militar, evangélicos e suas comunidades se dividiram enquanto forças reformistas de apoio aos governos trabalhistas e forças reativas que se ligaram aos governos de oposição ao trabalhismo. Assim, as religiosidades evangélicas são desagregadoras quando se mobilizam contra os direitos civis e o estado de direito. Mas agregam quando defendem a vida como direito humano. Com isso, constatamos que as religiosidades evangélicas podem ser uma coisa ou outra ou mesmo, enquanto comunidades, ambas. Essas são marcas da história evangélica recente. Mas, é claro que seria um erro uniformizar a atuação dos evangélicos. O certo é que evangélicos, em nome dos fundamentos e virtualidades das doutrinas de suas comunidades, confrontam a laicidade no Brasil.
Um Brasil ávido de fundamentos
O Brasil desde 1940 vem numa acelerada marcha de urbanização. Em 1940, 30% da população do país viviam em cidades. Hoje, 83% da população moram em cidades, portanto, oito em cada dez brasileiros vivem em núcleos urbanos. Além do aumento da população urbana ocorre no país uma urbanização do território: há crescimento da população urbana, do número de cidades, e os núcleos urbanos passam a se espalhar por todos os estados e regiões do país.
Surge, então, uma rede urbana ampla, interligada e complexa. Expande-se, assim, o modo de vida urbano, apoiando-se nos sistemas de transportes, telecomunicações e informações. Por outro lado, ocorreu uma tendência à desconcentração de atividades. Temos, então, uma situação em que permanece o peso acentuado das metrópoles, ao mesmo tempo em que há a desconcentração ou repartição de atividades entre as metrópoles e outros núcleos.
A religiosidade evangélica montou a cavalo no processo de urbanização. A procura evangélica por fundamentos é uma mostra de que o fenômeno não traduz um movimento espontâneo, mas foi dirigido para a construção de raízes que lhe dessem estabilidade e permanência. As antigas instituições religiosas, primeiramente calcadas no catolicismo rural e depois no protestantismo de migração e de missão, estão presentes nessa procura evangélica por fundamentos. E tal processo não tem definições precisas e sólidas, as religiosidades evangélicas urbanas necessitam de um permanente olhar à frente. E nesse olhar à frente, veem que as necessidades estruturais da sociedade e o descontentamento nem sempre claro das populações as levam a busca de fundamentos.
Ao acrescentarmos a variável urbanização ao evangelicalismo brasileiro, entendemos que a procura por fundamentos é também produto da globalidade e que, embora possa assumir formas antiglobais, sua tendência é partilhar as características da globalidade. Ou seja, surge como desequilíbrio e traz insegurança para as massas, e o movimento evangélico, calcado em fundamentos, apresenta-se como opção de sentido, esperança e vida para essas massas. Os estudos publicados pelo IBGE mostram que em 1970 a população protestante/ evangélica tinha 4,8 milhões de fiéis, e que em 1980 passou a 7,9 milhões. Constatou-se que na década de 90, a velocidade de crescimento das comunidades protestantes e evangélicas foi quatro vezes maior que a da população brasileira. Assim, em 1991 chegou a 13,7 milhões; em 2000 a 26 milhões. Em 2010, a 42,3 milhões, e em 2020 a 65,4 milhões de pessoas, ou seja, 31% dos brasileiros.
Como vimos, uma das características da religiosidade evangélica é a procura por fundamentos. Tal tendência pode ser ilustrada não como retorno às tradições históricas da Reforma, mas como leituras imagológicas do Antigo Testamento. De tal forma, que o movimento evangélico hoje é expressão profunda da virtualidade.
Assim, expressões do fenômeno evangélico são ressignificadas. São produções sintetizadas e sincretizadas de diferentes tradições, mas em especial do imaginário judaico-cristão. São formas particulares de adaptação à urbanização e uma resposta aos efeitos da tribalização multicultural.
E deixamos a conversa
O desafio das religiosidades evangélicas consiste em não demonizar sua presença na política brasileira. Se os evangélicos consideram que a realidade é uma construção da fé e da oração, que remove montanhas, devemos reconhecer que a ética protestante, calvinista, cumpre um papel social importante. Ao proibir o consumo do álcool, de drogas, a prostituição e os jogos de azar, por exemplo, melhoram a situação familiar. Por outro lado, defendem a economia de livre mercado, que não é o inimigo, pois possibilita a ascensão social. O inimigo é o império do mal e sua decadência moral.
Podemos, caso utilizemos critérios modernos de análise, falar em tempo da mentalidade conservadora versus tempo da mentalidade progressista. Mas tais critérios de análise, embora sejam aparentemente facilitadores, já não cabem na multidimensionalidade do tempo na cultura. Devemos, então, falar de conflitualidade endêmica da sociedade brasileira e, como consequência, dos dilemas presentes na relação política versus movimento evangélico.
Temos que ver que a realidade se expressa de forma imagológica na política das religiosidades evangélicas. Isto faz com que as propostas evangélicas interseccionadas enquanto governamentais, quer no que se relaciona à pessoa, à família ou às comunidades, se entrelaçam e produzem mutações e novas qualidades no tempo político brasileiro.
Donde, o Apocalipse, tão caro à escatologia evangélica, se apresenta como interseção entre a realidade divergente de tempo privado e tempo público. E aqui me lembro de George Lucas, quando disse que sua inspiração para moldar a aliança rebelde na Guerra nas Estrelas foi a luta dos guerrilheiros vietcongues, ou seja, da Frente de Libertação Nacional do Vietnã. E Lucas disse: “Estamos lutando contra o maior império do mundo e somos apenas um monte de sementes de feno com chapéus de pele de cabra que nada sabem“. Hoje, os evangélicos brasileiros se rebelaram contra o império do mal. Ou seja, as religiosidades evangélicas por sua virtualidade colocam desafios culturais – éticos e políticos – à laicidade brasileira. Isto porque o tempo evangélico deixou o corner e traduz para seu público variáveis éticas, políticas e sociais, que plasmam tempos de confronto com a sociedade laica e pluralista.
Essa rebelião caminha com a ascensão e presença marcante do movimento evangélico. Nesse sentido, resistem ao império do mal. Mas, não há porque demonizar as religiosidades evangélicas. É necessário sim buscar compreensões culturais e históricas que levem as lideranças da sociedade civil a uma atualização do pensar a política no Brasil, reconhecendo que o país não está diante de nuvem passageira, mas de realidades que interagem profundamente com os desafios do estar brasileiro hoje.
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Publicado originalmente em https://jorge-pinheiro.blogspot.com