Bolsonaristas na esteira dos milicianos

Antes da milícia entrar é preciso instaurar o caos. Forças policiais realizam sucessivas operações, o número de mortos sofre uma escalada rápida. “Balas perdidas” viram rotina. Tiroteios passam a ocorrer sem hora nem lugar. O terror começa a afetar a todos. O medo se torna companheiro e com ele todo tipo de doenças emocionais e físicas.

As pessoas enveredam pelo auto confinamento. Imagens das mortes, das guerras, dos corpos desmembrados e jogados em rios e pontos de desova se tornam rotineiras, percorrendo as redes sociais. Há uma miríade de sofrimentos, invisíveis, por dentro da alma, fustigando os moradores, reduzindo-os à incerteza cotidiana, ao desalento.

Essa imprevisibilidade é a antessala do golpe final. Do domínio completo miliciano.

Mas para se chegar nisso a milícia terá que enfrentar o grupo armado ali hegemônico, normalmente uma facção do tráfico de drogas que se recusa a se subordinar ao invasor. Mais do que com o número de homens, fuzis e táticas de confrontos armados, essa guerra final contará com a destruição moral, simbólica e cultural do inimigo. É preciso uma desmoralização sustentada pela própria população, não mais disposta a preservar os atuais donos do pedaço, mesmo que estes sejam moradores antigos do lugar, conhecidos e com vínculos estreitos com os familiares ali presentes. Um dos pontos chaves desse ato final é quebrar a capacidade de resistência por completo. Os lugares, as pessoas, os circuitos do grupo a ser rechaçado assistirão ao suprassumo do terror. Será algo ao qual ninguém conseguirá se contrapor, resistir ou ignorar. Depois disso, só resta a rendição. Não há outra saída. Um fato consumado.

A estratégia bolsonarista iniciada no 8 de janeiro guarda, mantidas as devidas proporções, uma similaridade com a invasão miliciana. Foram quatro anos de escaramuças articuladas, pontuais e sistêmicas, produzindo fissuras no tecido social, acumuladas e operacionalizadas por diferentes grupos sociais, articulados em redes, impondo agressões, desmoralizações, incertezas cotidianas, mortes banalizadas e a implantação do fato consumado.

Aquilo que se asseverou como democrático, condizente com a liberdade humana na sua forma mais avançada, expresso em eleições limpas e justas, tornou-se, nesse caso, a antessala do golpe. Catalisou movimentos sociais, religiosos, políticos, econômicos e culturais capazes de levar uma empregada doméstica evangélica, do alto de sua credulidade, imersa na sua rede familiar e religiosa a se deslocar milhares de quilômetros de ônibus para ferir de morte o diabo que pretende vencer. No topo, generais, governadores, empresários e deputados movimentam, por dentro das leis, os próximos passos do ato final de quebrar por completo a capacidade de resistência do atual governo, após o qual só resta a rendição.

Preocupados com as regras democráticas e políticas que tanto prezam, os vitoriosos nas urnas não enxergam a decomposição da própria democracia que comporta a sua autodestruição em nome da vitória final dos mais fortes, pois capazes de impor, a todos, a força da sua presença, respaldada nas armas que os sustentam e no próprio Estado onde ocupam cargos chaves. O fato consumado miliciano e bolsonarista tem a mesma origem, a destruição moral e simbólica do inimigo, seguida da supremacia bélica e do respaldo popular. Ou se desmonta por dentro das regras democráticas com habilidade, a partir de prisões, exonerações e exposições do núcleo duro do golpe, ou se sucumbirá. Ou se acerta o coração da besta que se aproxima ou ela nos devorará.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone
Clique aqui para ler  “Chame a milícia: O Estado e a violência em tempos de coronavírus”, do mesmo autor e publicado em Dilemas.