Um dos maiores desafios de cientistas e demais produtores de saber é encontrar uma boa fórmula para a sua sobrevivência em uma caquistocracia, ou seja, uma sociedade que seleciona seus piores indivíduos para os cargos de poder.
Em regimes que migram na direção dessa condição, a vida daqueles que se dedicam ao saber torna-se crescentemente insalubre ao ponto de não ser exagero dizer que esses somente são tolerados quando se mostram necessários. No caso específico da crise do coronavírus, vimos que em determinadas caquistocracias, mesmo sendo extremamente necessários, cientistas podem ser atacados. Esse é o caso, por exemplo, do Dr. Pedro Hallal, da Universidade Federal de Pelotas, que teve projetos interrompidos justamente por serem importantes.
Por sinal, no Brasil de hoje, o clima é de puro terror entre os produtores de saber, em especial entre os acadêmicos. Não faltam alunos de iniciação científica, mestrado e doutorado em depressão, não pela pandemia, também um poderoso motivo, mas pelo que ela desnudou: a face mais mórbida da ignorância, seu caráter orgulhoso e assassino. Ademais, de que valeria toda a nossa dedicação, às vezes acompanhada de uma série de privações, se nossos concidadãos pouco ligam para o conhecimento que nós geramos?
Cientistas, de um modo geral, também não são preparados para o tipo de debate presente em redes sociais da nossa querida caquistocracia, onde a ofensa, a agressão e o negacionismo radical são a tônica, em um tipo de trogloditismo que vem sendo cada vez mais valorizado. Sinal disso é a quantidade de deputados fortinhos (tipo Daniel Silveira) que foram eleitos nos últimos anos. Longe de denotar preconceito, a troca da sofisticação intelectual pela musculatura física e a brutalidade mental são bastante evidentes em cenas como a da emblemática destruição pública da placa da Marielle.
É esse o tipo que está no poder. É o miliciano carioca; o grandão que fazia bullying na escola; o vigarista cujo sonho é ser síndico para embolsar o dinheiro do condomínio; o cara que passa com o carro na poça d’água para molhar a velhinha que espera o sinal abrir; o cristão que odeia índios e gays; o cretino que desconhece ciência, mas nega o que especialistas dizem; o recalcado cuja grande diversão é contar piadinhas homofóbicas e racistas; a banda podre dos ruralistas que pouco liga para o meio ambiente e depois reclama da consequente falta d’água; e o cara cuja miudeza intelectual nunca lhe permitiu entender que atrás de cada suposto “mimimi” havia uma real e brutal estrutura de opressão social.
Orientados pelo filósofo destrutivista Olavo de Carvalho, os brutamontes que viraram deputados nas últimas eleições usam fake news, falácias e o medo do público para criar uma realidade paralela para onde a militância embarca. Sobre aqueles que não aceitam suas narrativas estapafúrdias do mundo, esses soltam seus cães e milícias digitais e, mesmo sendo já investigados pelo Supremo, continuam aterrorizando cientistas e políticos de bom senso.
Mas isso não é, exatamente, inesperado ou uma novidade. Os mais racionais, de fato, sempre levaram desvantagem nas relações bilaterais com os mais trogloditas. Para começar eles são, em todo conflito, os que cedem mais na busca da conciliação, os mais violentados etc. Isso tem aplicação desde as complexas questões diplomáticas entre nações até as mais simples relações afetivas. Em uma guerra, por exemplo, serão os mais racionais aqueles a tratar melhor seus prisioneiros, enquanto, como prisioneiros, serão eles a serem mais humilhados, aterrorizados, torturados, mutilados e mortos.
Já em um divórcio de um casal, será a parte mais racional aquela que colocará os interesses dos outros (sejam eles filhos ou não) acima dos seus próprios e será essa mesma a se empenhar mais intensamente em remediar as consequências do litígio. Os mais racionais entendem ou se esforçam para entender até mesmo os mais fanáticos opositores, jamais sendo contrários à sua existência. Afinal, quem valoriza a diversidade? A história mostrou que o contrário não é verdadeiro.
Cabe ressaltar que eu uso o termo “razão” como equivalente a “inteligência”, “razoabilidade” (que é a razão aberta à sensação), “virtude”, ou mesmo “bondade”, na medida em que esses conceitos se misturam a ponto de fazer sumirem suas fronteiras. Essa paridade é respaldada pela filosofia socrático/platônica que moldou, por diferentes caminhos, parte relevante da ética do mundo ocidental. Como diria o filósofo inglês Alfred Whitehead e repetido por outros: “A filosofia ocidental nada mais é que nota de rodapé de Platão”. Estar certo é ser virtuoso e ser virtuoso é ser bom e justo.
O problema é que nem a filosofia grega e nem suas descendentes nos ensinaram, apropriadamente, a fórmula de levar uma vida justa e sobreviver. Na verdade, ela nunca teve essa fórmula. Tanto que boa parte dos melhores filósofos e portadores da razão, inclusive o próprio Sócrates e estoicos como Sêneca e Boécio, foram aprisionados e mortos pela crueldade e insensatez daqueles que não compartilhavam da mesma índole. Guardadas as proporções, continuamos a ser esmagados por quem elegemos. Políticos pseudomoralistas continuam replicando a velha estratégia do julgamento de Sócrates onde a plateia não foi convencida pela razão, mas sim pelo discurso de ódio e medo imposto pelos acusadores. O filósofo foi acusado de ameaçar a democracia (hoje “a ameaça comunista”), a crença nos deuses (hoje, subjacente ao lema “Deus acima de todos”) e mesmo no respeito de filhos aos pais (hoje apropriadamente representado pela “escola sem partido”, que tem por objetivo oculto evitar que o ensino coloque os filhos contra as crenças político-religiosas dos pais). O mundo gira e continua o mesmo.
Mas o título deste artigo carrega uma promessa – nos mostrar como viver em um regime caquistocrático – e, nesse sentido, Sócrates e estoicos contribuíram muito sim, mesmo tendo sido condenados. Tanto a mensagem de Sócrates a seus discípulos nos momentos que precederam a sua morte (presentes nos discursos de Platão) quanto as mensagens de Boécio em suas conversas com a senhora imaginária que este chamava de filosofia (perpetuadas no livro “A Consolação da Filosofia”) além de nos ensinarem como enfrentar a morte em si, são um belo exemplo de como escaparmos da depressão e da ansiedade impostas por esses tempos sombrios.
Nessas mensagens, os filósofos nos ensinam como pode estar presente em nosso sofrimento uma série de ilusões e medos descabidos, todos magnificados por nossa prepotência em acreditar que dominamos os desígnios da história e do futuro. Sócrates consolou seus pares, questionando o que haveria de tão ruim na morte e pondo em dúvida o destino de seus acusadores. Quanto à morte, seguramente, ele estava certo e quanto a seus acusadores também. Mais que isso, seu legado se fez presente em todo o mundo nos 2.500 anos subsequentes, coisa que nem ele ousaria prever.
O filósofo contemporâneo Slavoj Zizek, um crítico feroz de nosso capitalismo e mesmo do socialismo, certa vez se manifestou sobre a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos como uma chance dada à história de finalmente visualizar o mal com mais clareza. Na época, eu achei meio otimistas demais e até masoquistas os argumentos usados pelo filósofo. Hegeliano nato, Slavoj é um crédulo da dialética histórica que talvez precisasse de um empurrãozinho daquela figura estereotipada para ter seu lugar restaurado. Essa minha impressão sobre o otimismo exagerado daquele notável esloveno foi abalada pela eleição de Joe Biden e, principalmente, pelo seu discurso de posse. Esse discurso carregava elementos que, claramente, foram precipitados na história pela clareza que a “maldade” trumpista carregava consigo.
Eu sei, palavras são palavras. Mas, vejam: antes elas nem existiam. Cabe a nós, cientistas, historiadores, artistas, estudiosos em diferentes áreas do saber continuarmos apontando e dando contornos ao mundo que desejamos, de modo que ele fique o mais claro possível. Como diria o próprio Slavoj, quem determina a forma dos oceanos são justamente as áreas secas ao seu redor. Temos agora, com mais clareza do que nunca, a chance de mostrar à nossa sociedade o que não desejamos. Mais do que nunca sabemos da importância do combate ao preconceito, à desigualdade e à destruição ambiental. Mais do que nunca sabemos da fragilidade de nossa democracia.
Cientes de nossa ignorância sobre o futuro, resta-nos então a tarefa de fazer o que nos cabe: produzir e comunicar saber.
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