O projeto excludente e recessivo do grande capital

Tal Consenso resultou de encontro promovido pelo Banco Mundial (BIRD) e Fundo Monetário Internacional (FMI) realizado na capital dos Estados Unidos da América em 1989. Nele estiveram reunidos economistas (a grande maioria de filiação teórica neoclássica), quadros políticos e grandes empresários movidos pelo intento de solucionar dois graves problemas: a pressão inflacionária e a crise econômica – que, aliás, já completavam então cerca de 20 anos. Por conseguinte, dado que o ali deliberado ganhou corações e mentes nas três décadas que se seguiram mundo afora, é necessário não perdê-lo de vista. Para tal, sete são os aspectos a examinar: o contexto histórico, os objetivos gerais, as principais propostas, os sentidos explícitos, os sentidos implícitos, o núcleo duro, e as consequências sociais e econômicas do Consenso de Washington (CW).

O contexto histórico. Reiterando: o mundo experimentava desde o final dos anos 1960 marcada pressão inflacionária e severa crise econômica. Mas havia pelo menos mais um problema: situado no campo das ideias, posto que os diagnósticos e as propostas apresentados pelos economistas nesse tempo não foram amplamente adotados e nas vezes em que o foram geraram resultados muito ruins em termos de emprego e renda. Nessa cena, de um lado estavam os keynesianos, alguns já em roupagem pós-keynesiana, que sequer eram ouvidos, visto que foram amplamente responsabilizados pelos aludidos problemas (afinal, eles estiveram no poder até meado dos 1970’s) e de outro os economistas neoclássicos que, igualmente em novas e, no caso, também diversas roupagens (monetaristas, novo-clássicos etc.), tampouco conseguiram afirmar suas elaborações como o norte a seguir. Enfim: nenhuma dessas vertentes teóricas (a liberal e a social-democrata/keynesiana) se mostraram confiáveis de modo que lhes fosse delegada a incumbência de sanar os problemas em tela.

Os objetivos gerais. Como se disse ele ‘surge’ para solucionar o dilema inflacionário e o do crescimento econômico, mas também para fazê-lo de maneira a gerar consenso entre os partícipes do aludido encontro. Foi nesse âmbito que o BIRD e o FMI, convertidos que estavam ao credo liberal, trataram de organizar/consensar a torre de babel que virara a seara neoclássica nas duas décadas assinaladas (1970-80), como sugerido no parágrafo anterior, bem como convencer os demais sujeitos então presentes sobre a eficácia da proposta apresentada (dado o diagnóstico focado na alta de preços e no baixo crescimento econômico). Logo, pode-se dizer que os objetivos do CW eram ambiciosos; e isso se mostra ainda mais claro quando consideradas as suas pretensões hegemônicas. De outra forma: ele pretendia ser amplamente disseminado, e sua formulação textual e oral bem simples atendia/visava exatamente atingir esse objetivo (como se mostrará em seguida).

As principais propostas. Em primeiro lugar se recomendou ‘colar’ as moedas nacionais no dólar americano de modo a eliminar a inflação no suposto, bem fundado, de que essa moeda dele estava isento. E em segundo promover reformas liberalizantes. No que trata do primeiro aspecto, o resultado foi positivo, pois como por encanto as pressões inflacionárias desapareceram. No que trata do segundo aspecto, dentre outras, elas foram as que seguem: a privatização de ativos públicos, a desregulamentação comercial e financeira, a flexibilização das relações contratual-trabalhistas, a realização de reformas trabalhistas e previdenciárias etc. – por suposto, todas elas elaboradas em clara exegese das chamadas virtudes do livre mercado. É dizer: o Consenso definiu um passo a passo trivial: estabilização dos preços, reformas liberais e crescimento econômico.

Os sentidos explícitos. Dadas a estabilização dos preços e a exegese das virtudes do mercado, as propostas alinhadas buscavam alargar o chamado ambiente de negócios no plano internacional. De maneira diversa: elas deveriam romper os limites existentes seja do ponto de vista da rentabilidade de “per se” seja, combinadamente, dos espaços geoeconômicos. Exemplo: no caso da flexibilização das relações contratual-trabalhistas, o estabelecimento de novos regramentos consistia na retirada de direitos de modo a reduzir os custos salariais, em especial nos países periféricos – o que tem sido levado adiante sem qualquer efeito positivo sobre a geração de emprego e o aquecimento econômico. É dessa mesma lavra a defesa da reforma previdenciária, sendo a sua racionalização largamente conhecida: as despesas efetuadas com aposentados e pensionistas, dado o envelhecimento da população, estariam levando o orçamento público à exaustão. À parte o simplismo dessa formulação (…), o objetivo central dessa propositura era (e é) ‘apenas’ economizar recursos para outros fins, notadamente para a rolagem da dívida mobiliária na qual estavam enredados (e continuam estando) vários países, em particular, mais uma vez, na periferia mundial. Logo, as propostas do CW foram elaboradas para o alcance de dois objetivos complementares: expandir a rentabilidade empresarial em todos os lugares que isso fosse possível, tendo ainda como objetivo-premissa a ‘captura’ dos Estados/governos aos ditames do novo ordenamento – a respeito desse último temário vide os artigos que já publiquei aqui no Terapia Política.

Os sentidos implícitos. No que concerne à estabilização dos preços, como adiantamos, o resultado foi notável – ou seja, a inflação deixou de ser problema. Mas por que ela constou com destaque da pauta da aludida reunião? Simples; porque prejudicava as decisões empresariais. Afinal, posto que elas sempre envolvam aposta contra o futuro, a dinâmica da formação de preços vigente naquele tempo dificultava sobremodo os cálculos prospectivos de rentabilidade. É dizer: o combate à inflação interessava ao conjunto do empresariado para efeito da minimização dos riscos envolvidos em seus processos de aplicação de capital, em especial aos conglomerados transnacionais. Logo, pode-se dizer que o combate à inflação não se deu porque ela corroía o poder de compra dos assalariados, mas sim, decisivamente, pelo que veio de ser escrito. Mas existia no mínimo mais uma razão para enfrentá-la: ela prejudicava os interesses dos Estados Unidos da América (EUA) na medida em que esse país, nesses mesmos anos 1980, havia se tornado o hospedeiro por excelência de todas as modalidades de capital existentes no planeta graças à chamada diplomacia do dólar forte (governo Reagan). É dizer: eles precisavam inverter essa situação, de importadores para a de exportadores de capitais, e assim reduzirem seus déficits gêmeos – o externo e o mobiliário (aqui as duas primeiras propostas mencionadas caíam como luvas para o alcance desse desiderato). Enfim, tanto o combate à inflação quanto as reformas do CW interessavam ao conjunto do empresariado e, particularmente, aos EUA que necessitavam equacionar os problemas em questão – não esquecendo que tal resolução reforçaria seu exercício de poder no plano internacional.

O núcleo duro. As mudanças ora defendidas não ocorreriam sem a ‘chancela’ da forma dominante de capital do seu tempo. Mas que capital era/é esse? Em coro com os economistas pós- keynesianos, corrente teórica surgida nos 1970’s, o capital financeirizado (KF). Tal capital, que começa a assumir sua dominância a partir desses mesmos anos, distingue-se da forma antes prevalecente, o capital financeiro (kf), pelas seguintes razões: i) por reunir em si, como se fosse uma caixa financeira, presentificada nos mencionados conglomerados, todas as suas formas de existência (o kf reunia ‘somente’ o bancário e o produtivo); ii) por afirmar sua face estritamente especulativa sobre a geradora de riqueza real (na era do kf essa relação era a oposta); e, iii) pelo seu raio escalar de atuação (infinitamente maior que o da forma dominante anterior). Sendo assim, assinale-se que o KF se tornou de fato hegemônico com o CW, tanto que ele passou a se metamorfosear em formas distintas com extrema velocidade e sem maiores perdas patrimoniais, bem como, dada a sua natureza financeiro-especulativa, a obstar a geração de riqueza real (…). Logo, pode-se dizer que seu enorme potencial para gerar riqueza fictícia não se identifica com o fazê-lo pela via do crescimento da renda real. De novo: nada disso teria sido levado a termo sem as redes de proteção armadas pelo Estados/governos ‘capturados’ às práxis dos CW…

As consequências econômicas e sociais. Concluindo: i) ao desobstruir e potencializar o processo de valorização do capital no plano internacional, em especial dos existentes nas suas formas mais líquidas, não resta dúvida que ele foi bem sucedido; ii) não obstante, por conta dessa sua nova forma predominante de existência/atuação, esse capital passou a excluir todos os interesses econômicos que não fazem parte de seu seleto grupo, o dos poucos donos da riqueza mundial (financeirizada e concentrada); iii) por ser esse êxito de natureza excludente, a retomada do crescimento econômico se mostrou e mostra impossível por conta da prevalência dos rendimentos obtidos sob a forma juro em relação à forma lucro (o que na realidade significa que o CW não entregou uma das suas ‘promessas de campanha’: a retomada do crescimento econômico); e, iv) não fora bastante, na periferia do sistema econômico mundial tal Consenso implicou na destruição de cadeias produtivas e de postos de trabalho, no recuo drástico do grau de formalização da força de trabalho, no aumento da miséria etc. (voltaremos a esse temário numa próxima oportunidade).