Dollar and Real

A possibilidade de aprovar uma lei em que os cidadãos, empresas, bancos, residentes e não residentes possam ter contas em dólar aqui no Brasil coloca em risco a questão da soberania nacional.

Parte da elite econômica – empresários, banqueiros, ricos e classe média (alta e média) – têm uma irresistível atração pelos Estados Unidos da América. Muitos gostariam de lá morar ou lá já moram [Miami é o destino preferido desses brazucas], mas não sei dizer se o ‘povão’ também tem essa atração. Espero que não!

Há uma forte atração também pela moeda estadunidense – o dólar, que ainda é a moeda mais poderosa do sistema monetário mundial. Dirão: com dólar na carteira ou na conta bancária estamos feitos! O dólar é aceito em qualquer lugar do planeta Terra.

Muitos brasileiros têm atração pela capacidade de inovação tecnológica das empresas americanas. As empresas de tecnologia (big-techs) são a bola da vez: Google, Apple, Microsoft, Facebook e Amazon.

E outros tantos têm atração pelo poderio militar dos EUA…

A atração é tão recorrente na nossa história que Juraci Magalhães, embaixador do Brasil nos EUA no período da ditadura militar, teria dito certa vez: “O que é bom para os EUA é bom para o Brasil”.

Será que essa é a razão de ter sido aprovado na Câmara dos Deputados um projeto de lei que dará liberdade para abertura de contas em dólar no Brasil? Por essa irresistível atração que parte de nossas elites políticas e econômicas têm em relação aos EUA e por sua poderosa moeda? Ou serão apenas interesses econômicos, dos bancos, das empresas, dos especuladores?

A moeda de um país é parte importante da soberania nacional. Logo, nossa moeda, o Real, é uma das dimensões da soberania nacional. Até hoje, aqui no Brasil, as transações econômicas, financeiras e comerciais só podem ser realizadas na moeda brasileira, o Real.

Caminhar na direção de permitir que residentes e não residentes abram conta em dólar no nosso próprio país é pavimentar o caminho para abrir mão de parte da soberania nacional.

Como foi dito acima, o dólar é ainda a moeda mais forte no cenário mundial. Circulando livremente pelas nossas terras, dificultará a gestão do Banco Central na condução das políticas monetária e cambial. O principal objetivo da política monetária é preservar o valor da moeda nacional, o Real, mantendo baixa a inflação.

O Real é uma moeda hierarquicamente inferior ao dólar na economia mundial. Não é uma moeda conversível. Em outras palavras, aqueles que têm em posse o Real não conseguem comprar e vender bens e serviços fora do Brasil em reais. Existem algumas exceções para transações em Reais, nos países do Mercosul. As transações financeiras no mercado internacional são sempre feitas nas moedas conversíveis e aceitas no sistema monetário internacional que são o Dólar, o Euro, o Iene japonês e o Renmimbi/Yuan chinês.

Logo a relação entre o Real e o Dólar, expressa pela taxa de câmbio, é sempre importante para definir as relações econômicas do Brasil com o resto do mundo. A taxa de câmbio é um preço muito importante que afeta toda a economia brasileira. Seu valor afeta a importação, a exportação, as transações financeiras como remessa de lucros, pagamento de fretes, seguros, entre outras. Vale também para os turistas que viajam para fora e os que vêm para o Brasil.

O que pode acontecer se o Brasil adotar o dólar?

Permitindo que residentes e não residentes possam ter contas em dólar no Brasil, a disputa e a arbitragem (trocar de moeda em função de ganhos financeiros de curto prazo) do valor do Real em relação ao Dólar será intensificada. Uma luta de Davi contra Golias.

Os atuais movimentos especulativos no mercado cambial certamente serão ampliados. Provavelmente aumentará a volatilidade, a oscilação da taxa de câmbio, que expressa a relação entre o Real e o Dólar.

Essa volatilidade já é muito grande atualmente. O Real brasileiro, a Lira turca e o Rand sul africano estão entre as moedas mais voláteis do mundo no período recente. São moedas utilizadas para especulação, ora por valorização, ora por desvalorização. Sobem e descem como elevador.

Quem ganharia com essa liberdade de termos contas em dólar no Brasil?

Além dos especuladores, todos os agentes econômicos com “bala na agulha” para se movimentarem para lá e para cá, no Brasil e no exterior, comprando e vendendo reais e dólares conforme seus interesses de lucro.

Para enfrentar a intensificação desses movimentos especulativos, o Banco Central do Brasil precisaria atuar não apenas considerando o Real e seu poder de compra (a inflação). Teria que dispor de reservas cambiais em dólar para atender a demanda dos agentes econômicos por aquela moeda. Esse movimento de compra e venda de dólar já existe, incluindo os derivativos cambiais (apostas no valor futuro), mas seria reforçado se aprovada a liberdade de contas em dólar aqui no Brasil.

Em outras palavras, nosso Banco Central perderia graus de liberdade de atuar sobre a política monetária (demanda por moeda, taxa básica de juros, volume de moeda em circulação) e a política cambial. A política do Banco Central brasileiro estaria pressionada não só pela demanda de moeda em reais, mas também pela demanda de dólares e também pelos movimentos de idas e vindas de conversão Real-Dólar-Real ou Dólar-Real-Dólar.

Vale lembrar que a variação da taxa de câmbio influencia não só a inflação doméstica, como também as decisões de investimento das empresas, bancos, exportadores e importadores. Quanto mais a taxa de câmbio oscilar, pior para a estabilidade econômica do país.

A possível dolarização de nossa economia significará mais um movimento em direção à perda da soberania nacional. Assim como a venda das reservas do Pré-Sal, a privatização das empresas e bancos públicos e a venda de empresas importantes para o exterior como a Embraer – revertida pela crise mundial da Boeing.

Resumindo…

Tudo indica que, no médio e longo prazo, se a liberdade cambial for aprovada em lei, o Brasil terá uma moeda enfraquecida e a economia brasileira caminhará para a dolarização.

Por que um país como o Brasil, um dos maiores do mundo em extensão territorial e população, pretende abrir mão de parte importante de sua soberania nacional representada pelo poder de gerir sua moeda? Conhecemos o exemplo da Argentina onde o dólar tem mais força que o peso argentino.

Voltando à pergunta do início: quem ganharia com essa nova lei de liberdade cambial? Certamente não será o povão. A maior instabilidade cambial, os riscos inflacionários e a incerteza sobre as decisões de investimento poderiam afetar o dia a dia da população com mais inflação e menos geração de emprego e renda.

Ganhariam todos os agentes que pretendem se proteger (hedge) e especular numa moeda forte sem nenhum compromisso com a estabilidade do país. Quem são eles? Sem generalizar indevidamente, parte dos bancos, exportadores, importadores, empresas, ricos, pessoas de alta renda, especuladores.

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NR: Artigo publicado originalmente no Reconta Ai.

Sobre esse tema, leia também o artigo “A reforma cambial: liberalização, conversibilidade e dolarização” de Paulo Nogueira Batista Jr.