No artigo “Torturando os números”, Eduardo Scaletsky fez uma análise da pesquisa de opinião da Atlas e os números ainda bastante consistentes do apoio à extrema direita, além das minguadas perspectivas da direita política “não autoritária” e do centro.

Este artigo é uma singela contribuição ao debate e poderia recair em um tentador cinismo, concentrando a análise no fato de que direita “não autoritária” foi sempre uma miragem no Brasil, um país em que a cultura democrática é fraca. Tento ir por outro caminho.

O jovem escritor chileno Benjamin Labatut publicou dois pequenos e originais livros que tratam da perplexidade diante do atual tempo histórico: “Quando deixamos de entender o mundo” e, depois, como uma continuação das reflexões, “Pedra da loucura”.

Nesse último livro, Labatut cita uma reflexão do escritor norte-americano de terror e ficção-científica Howard Phillips Lovecraft, contida no livro “O Chamado de Cthulhu”, escrito quase 100 anos atrás: “Vivemos numa plácida ilha de ignorância (…). As ciências, cada uma avançando em sua própria direção, pouco nos prejudicaram até o momento; mas algum dia a soma de todo esse saber dissociado abrirá uma perspectiva tão aterrorizante da realidade e do lugar assombroso que ocupamos nela que ficaremos loucos por conta dessa revelação ou fugiremos da luz do sol para a paz e a segurança de uma nova era das trevas”. Ou a loucura ou o conforto das certezas de uma nova era das trevas… fiquei remoendo.

Labatut foca sua agradável prosa, em especial no primeiro livro (“Quando deixamos de entender o mundo”), em toda a revolução do conhecimento provocada pelos novos caminhos e descobertas da matemática e da física ao longo do século XX. Os labirintos de um mundo em que a imaginação ou a linguagem não são mais capazes de descrever a realidade apresentada pelas observações e pelas formulações matemáticas dessas observações.

Ainda que Labatut claramente não esteja falando apenas das ciências, subo humildemente nos ombros do escritor chileno e trago essa reflexão para o campo político, especificamente.

Vendo o resultado da pesquisa Atlas e a continuação da agressividade e da resiliência política da extrema direita, poderia dizer que o governo Lula tem apenas seis meses, que ainda não deu tempo de produzir resultados mais palpáveis, que não seria possível uma guinada de 180 graus em tempo tão curto… isso tudo é verdade, mas incompleto.

Penso que a extrema direita captou o Zeitgeist, o sentido e o espírito do tempo, a busca por segurança em um mundo sem destino, com o objetivo claro de nos levar a uma nova era das trevas, um dos destinos profetizados por Lovecraft, citado por Labatut.

Ainda que seja avesso a fatalismos históricos, quase sempre máscaras de pensamentos reacionários, devemos reconhecer que o governo Lula, assim como todos os democratas e defensores de um mundo menos desigual de todos os cantos do planeta, navega contra a maré.

A extrema direita encontrou o modo de dialogar com um mundo sem projetos políticos mobilizadores. Entendeu que num mundo fragmentado e dominado pela descrença, a comunicação e a política devem ser compartimentadas naquilo que se tornou a fuga de relevância de grupos sociais diversos, pouco importando se há conexão ou não entre eles.

Há semelhanças com os movimentos extremistas de direita do passado, em especial com o fascismo do século XX, sobretudo mais em seus efeitos. Mas aquele extremismo de direita tinha também um projeto totalizante, enquanto o atual é caótico, difuso, quase anárquico, com armas retóricas multifacetadas e desconexas, inclusive roubando pautas da esquerda para seus propósitos nefastos.

Pode-se acusar Goebbels de muitas coisas, mas não o de defender as ideias nazistas com base na “liberdade”, como faz a extrema direita atual.

Liberdade para se armar, para um capitalismo do tipo anárquico, para oprimir minorias, para defender e verbalizar ideias repugnantes, além de professar o ódio ao conhecimento, uma espécie de liberdade da estupidez contra a “tirania” da intelectualidade. Ao mesmo tempo em que na religião, a extrema direita defende o oposto da liberdade.

E está tudo certo nessa barafunda. De algum modo se conectam e produzem um movimento político com representatividade em quase todos os cantos do planeta, com seus tons e cores particulares.

A extrema direita contemporânea não quis brigar contra a realidade e construir um projeto generalista, contentou-se em trazer para seu guarda-chuva todo tipo de sentimento setorizado nefasto, ainda que um defensor de armas, um machista convicto ou um defensor ardoroso da versão bíblica da história não sejam necessariamente contra direitos sociais.

Diante desse diagnóstico, algumas conclusões. Não podemos nos iludir: nessa disputa, a defesa da democracia é indissociável da defesa das políticas distributivas. A velha pauta nunca foi tão atual, não há e não haverá espaço para aqueles que defendem a democracia como adereço chique de uma sociedade brutalmente desigual. Foi o modelo econômico neoliberal que fragmentou a sociedade e retirou dela a própria noção de coletividade, jogando as pessoas em desamparo para nichos de pertencimentos que não se comunicam.

A segunda conclusão é que o projeto de extrema direita tem discurso repaginado daquele dos anos 20/30 do século XX, mas, como aquele, trabalha para a acumulação do capital, de forma mais radicalizada até. Portanto, não podemos ficar surpresos com o apoio majoritário a esse projeto vindo do mundo das finanças.

Em terceiro lugar, não podemos abandonar os grupos que militam naquilo que muitos chamam de lutas setoriais, incluindo as “identitárias”, isso não acalentará a fúria da extrema direita, só os fará avançar mais. Essas lutas vieram para ficar, falam também sobre pertencimento e sobre uma nova forma de ver o mundo, algo essencial nesta realidade fragmentada que não recuperará de uma hora para outra a “consciência de classe totalizante”, em um mundo de ocupações ou empregos instáveis, por vezes sem contato com o empregador (que nem se apresenta como empregador) ou mesmo com outros trabalhadores.

Com o enfraquecimento dos meios tradicionais de manifestação da classe trabalhadora, vem das lutas desses grupos setoriais a principal força política para combater as demandas e os pertencimentos reacionários criados pela extrema direita.

Então, quem defende a unicidade religiosa não pode ser confrontado por quem diz que religião é uma faceta do capital, mas por quem defende o direito ao ecumenismo e inclusive a liberdade de não crer.

Quem diz defender a família contra os males do “gayzismo” e do “feminismo” não pode ser combatido com citações de “A origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado”, mas por quem vive outras formas de família e por quem luta contra a subserviência social e política da mulher, que tem forte suporte no discurso da família “tradicional”.

Independentemente de o modo de produção ser capitalista ou socialista, os ambientalistas têm o direito de incluir a sustentabilidade nessa equação. Não é só a força de trabalho que deve ser protegida, mas também os recursos finitos do Planeta e quem tem condições de contrapor o discurso predatório e anticientífico da extrema direita (a negação do aquecimento global, por exemplo) não são os postulados da economia clássica, mas aqueles que militam e produzem ciência nessa área.

Então, os movimentos setoriais somam na luta, seja para resistência, seja para os desejados avanços. São, por um lado, aqueles que dão os subsídios científicos contra o capitalismo predatório, para além dos argumentos econômicos clássicos. Por outro, no caso das minorias, são uma faceta da mesma luta pela igualdade, a igualdade verdadeira, que passa pelo reconhecimento e normalização das identidades particulares que levantaram a cabeça e disseram: “estamos aqui, existimos”.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone
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