Em Gaza, Mané Garrincha perguntaria se combinaram com os palestinos.
As guerras são excelente negócio. Os conflitos são o mercado, por excelência, da indústria e do comércio do armamento. Quanto mais tiros e mortes, mais vendas.
Porém, é após os tratados de paz que se abre o mais lucrativo campo para múltiplos investimentos na construção de novos prédios, espaços e equipamentos de lazer de alto luxo. Há um salto no valor das ações no Mercado que financia todas as etapas dessa maravilhosa destruição lucrativa.
Na década de 1970, a apenas 25 anos após a última guerra mundial, a maior economia do mundo eram os Estados Unidos, a segunda, o Japão e a terceira eram as multinacionais estadunidenses na Europa, beneficiárias diretas do Plano Marshall de reconstrução das cidades destruídas pela guerra. Estima-se que cerca de 70% dos US$ 13,2 bilhões destinados ao Plano Marshall (1948-1952) para a recuperação da Europa foram gastos na compra de bens e serviços produzidos pelos EUA. Isto é: os mesmos que lucram destruindo, lucram reconstruindo.
Quando falamos de Gaza – 2,2 milhões de habitantes em 365 km² e cerca de 40 km de faixa litorânea – peeense em uma cidade conhecida: Fortaleza, com 2,7 milhões de pessoas em 314 km² e cerca de 34 km de litoral. Imagine a capital cearense com a maioria de seus prédios esfarelados por bombas e com o direito de propriedade revogado. Levantar uma nova Fortaleza do chão levaria ao êxtase administradores de centenas de fundos de investimentos, inclusive tuas próprias LCI e as LIG e LF do bi-bilionário do apartamento que vês ao longe.
A ONU estimou em US$ 50 bilhões a reconstrução de Gaza. Mas não é construir habitações para a população retornada o que Trump propõe. “Trata-se de uma construção e não de uma reconstrução”, disse ele. Isto é, nada será como antes. O projeto deve aproximar-se do magnífico complexo egípcio de Sharm el-Sheikh, no extremo sul da Península do Sinai, Egito, na saída do Golfo de Aqaba, com resorts e hotéis de luxo, free shops, centros de compras com lojas de todas as grifes famosas, centros de convenções e eventos, cassinos e muitas torres com vidros espelhados, para gozo da classe média brasileira.
A construção da nova Gaza de Trump custaria de 70 a 100 bilhões de dólares em dinheiro público de outros países (especialmente os árabes), lastreando entre US$ 35 e 65 bilhões de capital privado – o prospecto do plano GREAT Trust fala em US$ 100 bilhões com promessa de não usar verbas federais dos EUA e de retorno elevado ao investidor, conforme reportagem e documento obtidos pelo Washington Post, no mês passado. Entre os financiadores cortejados, estão os fundos soberanos do Golfo: o Public Investment Fund (PIF) – fundo soberano da Arábia Saudita, com mais de US$ 700 bilhões em ativos, controlado pelo príncipe Mohammed bin Salman –, o Mubadala Investment Company, de Abu Dhabi, e a Qatar Investment Authority (QIA). Ainda não há anúncio oficial de investimentos em Gaza, mas a arquitetura do plano e o histórico desses fundos em infraestrutura apontam nessa direção. O PIF e a BlackRock assinaram, em 30 de abril de 2024, acordo para lançar uma plataforma multiativos em Riad; a Mubadala e o Goldman Sachs firmaram, em 26 de fevereiro de 2024, parceria de US$ 1 bi em crédito privado.
Dinheiro não tem cheiro nem religião
A ciranda financeira desse projeto não termina nos palácios de Riad ou nos condomínios de Palm Jumeirah. Passa por Wall Street, pela City de Londres e por Zurique. Bancos e gestores globais que já operam com capital do Golfo são peças-chave para transformar promessa política em ativo negociável – debêntures, fundos imobiliários, dívida lastreada em concessões.
A BlackRock opera hoje em parceria com o PIF em plataforma sediada em Riad (acordo anunciado em 30 de abril de 2024 e reforçado em 14 de maio de 2025).
A Mubadala firmou com o Goldman Sachs uma parceria de um bilhão de dólares para crédito privado na Ásia-Pacífico, conforme a agência Reuters em 26 de fevereiro de 2024.
E o genro de Trump, Jared Kushner, abriu o Affinity Partners logo após deixar a Casa Branca em janeiro de 2021 e recebeu dois bilhões de dólares do PIF, como revelado pelo Wall Street Journal em 8 de maio de 2022 e reiterado em matérias recentes sobre seu papel no dossiê Gaza.
Os fiadores israelenses
Netanyahu e seu ministro das Finanças, Bezalel Smotrich, oferecem a cobertura política ao projeto. O plano é transformar Gaza em polo imobiliário, portuário e industrial sob controle israelense e capital estrangeiro.
Smotrich apregoa a oportunidade de lucro. Em 17 de janeiro de 2024, numa reunião com empresários estadounidenses em Jerusalém, disse: “Devemos aproveitar esta oportunidade histórica. Gaza não será mais um território de terror, mas um espaço de prosperidade judaica. Vamos construir cidades, portos, zonas industriais. Isso é desenvolvimento – e é também segurança.”
Já citei em artigo anterior a crua declaração de Smotrich em outra reunião com empresários estadunidenses, neste mês, oferecendo o território de Gaza como se fosse um ativo israelense: “Israel gastou muito dinheiro nesta guerra, então precisamos decidir como obteremos nossa porcentagem no mercado de terras depois, em Gaza.” Desde então, multiplicaram-se declarações no mesmo sentido. Smotrich descreveu Gaza como uma “bonanza” imobiliária e citou conversas com os EUA sobre “dividir” o território – “a demolição está feita; agora começa a construção”, registrou o Times of Israel, em 17 de setembro de 2025.
A festa dos multibilionários
Esse bolão da sorte grande está sendo organizado pelos corsários do governo Trump: ele próprio, Jared Kushner, Steven Mnuchin e Wilbur Ross. Homens com longa ficha de negócios e litígios no setor imobiliário e financeiro associam-se agora às dinastias do Golfo, donas dos principais fundos soberanos do planeta.
O PIF, controlado por Mohammed bin Salman, já injeta capital em plataformas com gestoras ocidentais (BlackRock) e em fundos privados (Affinity). A Mubadala, ligada à família Al Nahyan, firmou alianças com Goldman Sachs e outras casas para crédito. A QIA, dos Al Thani, mantém apetite por ativos imobiliários globais. Nada disso é “reconstrução” no sentido social. É um festim bilionário: sociedade entre políticos, incorporadores e príncipes para transformar um território destruído em portfólio de oportunidades. Aos palestinos, sobra o papel de morrer – para que, sobre os escombros, se abram as “janelas de prosperidade”.
Limpeza étnica
Membros da ONU interpretaram essa proposta como uma forma de limpeza étnica – a retirada forçada de uma população para alterar a composição demográfica do território. O secretário-geral da ONU, António Guterres, afirmou que a remoção total inviabilizaria um Estado palestino e qualificou a proposta como “limpeza étnica”.
O terreno foi preparado por investidores como Jared Kushner, Steve Witkoff e Tom Barrack, negociadores da “paz” e articuladores do “pós-guerra”, conectados a fundos estadounidenses, europeus, árabes e israelenses.
Tijolo com tijolo num desenho lógico: limpeza étnica, gentrificação, expansão territorial israelense, atração de capitais bilionários para “reconstrução” de Gaza, desarmamento e expulsão do Hamas. Desenho conveniente para variados interesses econômicos e geopolíticos de estadunidenses, israelenses, árabes e europeus.
Mané Garrincha perguntaria se combinaram com os adversários. Não, não combinaram. Os palestinos não foram e não serão ouvidos. Talvez nem indenizados. O resultado do plano de “paz” não será um território redivivo para o povo que ali viveu e deseja voltar. Uma nova cidade ostentação estilo Dubai ou Sharm el-Sheikh será erguida sobre as ruínas de uma tragédia, onde, aos locais, sobrará apenas o papel de abrir as portas de Lamborghinis e Ferraris.
***
Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli Revisão: Celia Bartone
Clique aqui para ler artigos do autor.