Tratar da proliferação e dos impactos do SARS-COV-2 no Brasil, não sendo o meu lugar de fala a Epidemiologia, é uma tarefa, diria no mínimo, ousada. O baixo volume de testagem na população e a elevadíssima subnotificação de casos de contágios e, consequentemente, do número de óbitos decorrentes da COVID-19 não permitem que sejam traçados cenários minimamente seguros da doença no país, seja no nível macro ou nas escalas infranacionais. O propósito deste texto é trazer para o debate as dimensões da demografia e do adensamento dos domicílios, ou seja, um complicador a mais nessa já complexa discussão, de modo a apresentar mais uma evidência dos desvarios genocida do presidente ao implementar sua necropolítica, que tem entre seus elementos a defesa do “isolamento vertical”.

O anjo da morte, que ocupa a cadeira presidencial, ao defender tal medida, não referenciada em nenhum estudo científico, propõe que sejam “protegidos” os idosos e as pessoas com alguma comorbidade que se caracterize como fator de risco para contrair a COVID-19. Os demais deveriam ficar à disposição do capital, cujos detentores foram rapidamente agraciados pelo Banco Central com a redução da alíquota de compulsório sobre depósitos a prazo de 25% para 17% e já tiveram aprovada medida que garantirá a compra de títulos podres, mesmos os adquiridos antes da crise sanitária se instalar por essas plagas. Os mais vulneráveis sofrem para receber um auxílio emergencial de baixo valor monetário aprovado tardiamente, se expondo à infecção em filas quilométricas nas agências bancárias e da Receita Federal para regularizar os CPFs.

Onde a demografia se encaixa nesse contexto? Enquanto a disseminação do SARS-COV-2 ocorria mais intensamente na Ásia e na Europa, os indivíduos mais atingidos pelos vírus eram aqueles nas faixas etárias mais avançadas, ou seja, com 60 anos ou mais. Desse modo, se enxergássemos a dinâmica demográfica na ausência das relações sociais, as áreas mais atingidas no Brasil estariam localizadas nos estados com maior índice de envelhecimento (razão entre pessoas com 65 anos ou mais e aquelas com zero a 14 anos), pela ordem, Rio Grande Sul, Rio de Janeiro, Minas Gerais, São Paulo, Paraná e Santa Catarina, todos, segundo as últimas projeções divulgadas pelo IBGE, com mais de 50 idosos para cada 100 crianças. No entanto, quando observamos a distribuição espacial dos casos, somente Rio e São Paulo estão na lista dos mais atingidos, acompanhados de Amazonas, Pará, Amapá, Maranhão, Ceará e Pernambuco onde a relação entre idosos e crianças é muito baixa, variando de 17 a 42 pessoas com 65 anos ou mais por cada 100 crianças. Esses dados apontam que a questão demográfica é importante, mas não determinante. O Brasil é o principal país no qual transmissibilidade e as mortes, apesar de serem mais intensas entre a população idosa, atingem fortemente os indivíduos abaixo de 60 anos, tendo sido relatados casos entre crianças nas primeiras idades.

No que tange aos casos, na Espanha e Itália a taxa de incidência do vírus em menores de 60 anos era de aproximadamente 45%. No Brasil esses dados não estão disponíveis no portal do Ministério da Saúde, mas se usarmos como aproximação o número de internações por Síndrome Respiratória Aguda Grave, o percentual de internados até 59 anos de idade é de 61% (https://covid.saude.gov.br/). No caso dos óbitos de menores de 60 anos, de acordo com o portal da transparência da Associação de Cartórios, no momento que escrevo este texto, 27,9% das mortes por COVID-19 ou suspeitas atingiram essa faixa etária (https://transparencia.registrocivil.org.br/especial-covid).

O segundo ponto está relacionado ao adensamento e número de pessoas consideradas em grupos de risco nos domicílios. De acordo com seminário apresentado pelo demógrafo Gabriel Borges (https://www.youtube.com/watch?v=wviyQ7-jCRs&app=desktop), a maior proporção de domicílios com famílias conviventes, reunindo três gerações ou mais, está localizada nas regiões Norte e Nordeste. Além disso, a partir dos dados da Pesquisa Nacional de Saúde 2013, realizada com pessoas de 18 anos ou mais de idade, o autor aponta que 40% desse segmento etário possui pelo menos uma comorbidade para o risco de contágio, sendo esse fenômeno mais intenso entre pretos e pardos e nos menos escolarizados. Quando analisa a distribuição por domicílios com pelo menos uma pessoa no grupo de risco (idosos e comorbidades) conclui que 2/3 das moradias no Brasil estariam nessa situação. Ao olharmos os estados com maior índice de transmissão da doença, temos São Paulo e Rio de Janeiro com 73% dos domicílios nessa situação, Ceará (67%), Maranhão (66%), Pernambuco (65%), Pará (61%), Amazonas e Amapá (58%). Quer dizer, num quadro como esses falar em ‘isolamento vertical” é criar as condições favoráveis à proliferação do vírus.

Esses dados ajudam a entender os processos de transmissibilidade da Covid-19 e antecipam, como já estamos vendo, que serão os mais vulneráveis, que vivem em residências precárias e adensadas, sem saneamento básico, que estão na informalidade e acabam por utilizar os transportes públicos lotados, os que mais sofrerão com o contágio e, no limite, com a morte. Os aspectos demográficos reforçam a necessidade do distanciamento social para controlar o fluxo de contaminação, de modo a permitir que a precária capacidade hospitalar, resultante do sucateamento do SUS, consiga atender a população acometida da doença, em sua grande maioria adultos jovens e possamos sair mais rápido dessa crise sanitária.

Pelo lado do belzebu presidencial, a necropolítica se manifesta nas ações deliberadas de lançar o segmento menos favorecido da sociedade à exposição ao risco de infecção. Sua presença em locais com aglomerações de pessoas, seu estímulo às manifestações antidemocráticas e a defesa do tal “isolamento vertical”, confundem a população e contribuem para agravar ainda mais o quadro de transmissão da doença. Face a esse comportamento genocida, o editorial da revista científica The Lancet, do dia 07 de maio, assinala que “talvez a maior ameaça à resposta à Covid-19 para o Brasil seja o seu presidente, Jair Bolsonaro”.

Mesmo diante dessas evidências, o negacionista responderia com um sonoro “e daí?”!