A política fiscal no Brasil promove a injustiça social, porque está assentada sobre dois pilares mal construídos: (1) a base tributária da arrecadação de recursos é regressiva e retrógrada, penaliza proporcionalmente os mais pobres, e resulta de um modelo antigo, excessivo e caótico; e (2) a aplicação dos recursos não é capaz sequer de mitigar os efeitos regressivos com as políticas públicas que universalizam o atendimento para a população mais pobre.
Neste quadro, uma política fiscal como a que estamos enfrentando nos últimos seis anos, contracionista, recessiva é inexorável o aprofundamento da desigualdade social. Desde o início do governo Bolsonaro, ela foi concebida para ser a mais draconiana dos últimos tempos, mais restritiva do que os ajustes feitos no governo Fernando Henrique Cardoso para viabilizar o Plano Real.
Em 2019, primeiro ano do governo, houve uma radicalização dos cortes das despesas orçamentárias, que se iniciou em 2014, e atingiu principalmente as áreas sociais de educação, saúde, saneamento e previdenciária, assim como os investimentos em Ciência e Tecnologia foram reduzidos a um quinto. Da mesma forma, os projetos de infraestrutura encolheram drasticamente, assim como a oferta de créditos pelos bancos estatais – BNDES, Caixa Econômica Federal e BB.
Esse receituário conservador para adequar as finanças públicas às imposições da recessão econômica foi concebido para durar todos os anos da gestão Bolsonaro, a qual ainda utilizaria a arrecadação com as privatizações para reduzir a dívida pública, repetindo os mesmos chavões não cumpridos pelo governo Fernando Henrique, que privatizou sistemas produtivos inteiros e mesmo assim, durante os dois mandatos (1995 a 2002) mais que duplicou a dívida da União.
É necessário registrar que tanto a política de cortes de gastos, quanto a paralização de investimentos públicos provocados pela Operação Lava Jato, em nenhum exercício, desde 2016, foram capazes de conter o crescimento da dívida pública, mesmo com os ingressos oriundos de concessões e privatizações.
Em 2020, a pandemia da Covid-19 atropelou o governo, impondo uma reviravolta nos gastos públicos. O quadro se tornou mais dramático, porque mesmo antes da pandemia o cenário era de franca queda na arrecadação de impostos devido à recessão econômica imposta como receituário da política econômica neoliberal.
Para evitar o desastre fiscal, o governo articulou com o Congresso Nacional uma medida inusitada, um verdadeiro “absurdo”, uma heresia para um governo ultraliberal, a Emenda Constitucional (EMC) Nº 106, de 08/05/2020, que aprovou a “Quebra da famosa Regra de Ouro”, a qual consiste em não gastar mais do que arrecada. A Emenda tem como principal objetivo “flexibilizar” a restrição imposta pelo § 1º do Art. 164 da Constituição Federal, que impede o Banco Central de conceder empréstimos ao Tesouro Nacional.
Além de autorizar o governo a emitir títulos do Tesouro no volume que for necessário à cobertura das despesas com o Plano Emergencial, o Banco Central também ficou autorizado a adquirir títulos de bancos e empresas com reduzido grau de risco, mas que se encontrem em dificuldades causadas exclusivamente pela pandemia ( Art. 7º da EMC).
Ainda não se tem uma previsão do volume de recursos que serão efetivamente gastos com o Plano Emergencial em 2020, mas estima-se que sejam superiores a 400 bilhões de reais. Este déficit, somado ao déficit previsto para o exercício (124 bilhões), irá provocar o maior rombo fiscal da história da República.
Nos próximos anos o quadro é imprevisível. Por conta das falhas cometidas na condução das políticas preventivas contra a Covid-19, é possível que os gastos continuem elevados com o sistema de saúde e auxílio emergencial, o qual deverá ser prorrogado até janeiro de 2021. Atualmente a renda mínima de R$ 600,00 para 67 milhões de pessoas está custando ao Tesouro quase R$ 50 bilhões por mês. Com a sua redução para R$ 300,00 a despesa cairá pela metade, mas ainda é uma forte pressão contra cíclica reduzindo o risco de maior desemprego.
O impressionante é que o Ministério da Economia tenha sido obrigado a mudar de rumo, e enfrentar um brutal desequilíbrio fiscal utilizando soluções heterodoxas, próximas ao receituário keynesiano. A criação de receita fiscal através de dívida do Tesouro com o Banco Central, de dívida do governo com o próprio governo, ou seja, do governo se autofinanciando, é inconcebível na cartilha da Escola de Chicago, principalmente porque acreditam que haverá impacto inflacionário.
Isto nos leva a fazer algumas perguntas: por que Paulo Guedes optou por este caminho? Por que esse abandono da alma mater? A pandemia enterrou o receituário de Chicago? A estratégia neoliberal sucumbiu ao Coronavírus?
Não resta dúvida, a atual política fiscal e monetária é um dos problemas centrais da política econômica de Bolsonaro, e de qualquer próximo governo.
Para compreender os danos causados pela política fiscal, existem alguns pontos que precisam ser analisados: a origem da proibição constitucional do Banco Central no financiamento do Setor Público; o fim do Consenso de Washington; e o uso amplo deste tipo de financiamento por outros países, antes e durante a pandemia, e as perspectivas da política fiscal pós-pandemia.
Origem da proibição constitucional
Em 1988, quando a Constituição Federal foi promulgada, Margaret Thatcher ainda estava no poder, esbravejando o seu slogan ultraliberal, resumido na sigla TINA (There is no alternative, não existe alternativa fora do modelo neoliberal), repetida em diversos discursos que influenciaram a pauta definida e materializada no Consenso de Washington (formalizado em novembro de 1989).
TINA não era um delírio thatcheriano, ou apenas uma frase repetida por uma liderança isolada, mas um pensamento simplificado, eficaz no mundo da política. Uma frase que pega, cola nos discursos ou é colada como instrumento de marketing. TINA resumia todos os princípios que se transformaram nas 10 diretrizes do Consenso de 1989 pelos países líderes, que a partir daí impuseram uma agenda dolorosa a diversos países atrasados e em desenvolvimento dependentes de financiamentos externos e com fragilidade cambial.
Enquanto o cenário político internacional marcadamente conservador estruturava o Consenso de Washington no Brasil, caminhávamos para aprovação da constituição Cidadã. Por uma cilada da história, exatamente nas quatro décadas em que a hegemonia neoliberal sustentou o Consenso de Washington, o Brasil experimentou um dos mais longos períodos de democracia desde a sua independência. Todos os governos nesse período foram pressionados por organismos internacionais, e agências de classificação de risco internacionais (Moody’s, Fitch Ratings e Standard & Poor’s) a seguir e respeitar as restrições impostas pelo Consenso de Washington. Esse foi um dos marcos exemplares da hegemonia do capital financeiro nessa fase da globalização.
O “risco país” é o indicador e instrumento de controle e coerção do cumprimento das diretrizes do Consenso. Elaborado por agências de avaliação de risco, acaba sendo utilizado pelos grandes agentes públicos financeiros multilaterais como BID, BIRD, FMI, e grandes bancos privados internacionais, que exigem a adoção de medidas restritivas nas políticas macroeconômicas dos países carentes de apoio financeiro.
A Constituição Cidadã sem dúvida foi um avanço, sobretudo no desenho de relações institucionais entre os três poderes, e na garantia de direitos políticos e sociais que se alinham com o perfil de um Estado de Bem Estar Social. Mas não passou impune e acabou incorporando princípios neoliberais marcantes, alinhados às diretrizes políticas do movimento conservador internacional. Entre os princípios que afetam diretamente a política fiscal, encontram-se o da “disciplina fiscal”, da “redução dos gastos públicos” e da “reforma tributária”.
A tradução dessas restrições e condicionantes se manifestam em diversos dispositivos legais relativos ao Sistema Financeiro e na política fiscal. Mesmo antes da realização da reunião que consolidou as diretrizes do Consenso de Washington, a pressão para adoção dessas medidas já existia. A parcela de parlamentares conservadores do PSDB, PFL e até mesmo do MDB que participaram da constituinte era expressiva, e atuaram para que parte dessas diretrizes fossem incorporadas à Constituição.
É importante lembrar que a Constituinte ocorreu num período de forte instabilidade econômica, hiperinflação e de uma sequência de planos de estabilização fracassados. A própria Constituição foi promulgada apenas dois meses antes do Plano Verão.
No que se refere à política fiscal e monetária, o ponto que merece maior destaque está regulamentado no §1º do Art. 164 da Constituição, que vetou ao Banco Central conceder, direta ou indiretamente, empréstimos ao Tesouro Nacional e a qualquer órgão ou entidade que não seja instituição financeira. Esta restrição, deu mais poder ao mercado financeiro.
Nas crises internacionais da Ásia em 1997 e na crise da Rússia em 1998, quando o Brasil ainda não dispunha de saldos elevados nas reservas cambiais, o principal instrumento de proteção da estabilidade econômica era a taxa de juros. A elevação da taxa de juros foi utilizada de forma abusiva, o Conselho de Política Monetária chegou a praticar taxas de 40% ao ano, em 1999, em nome do controle da “fuga de capitais internacionais do País”. Atualmente as reservas cambiais são superiores à parcela da dívida pública detida por estrangeiros, e invariavelmente são “queimadas” nas instabilidades da situação econômica.
A Constituição acabou cristalizando uma armadilha para a política econômica, em particular para a política fiscal. Essa vedação, fruto da ideologia conservadora, que asfixiou as finanças públicas e multiplicou o tamanho da dívida, acabou tendo os seus fundamentos teóricos derrubados na crise de 2008 pelas evidências empíricas.
Pandemia e o fim do Consenso de Washington
A pandemia acabou provocando um debate entre diversos economistas de tendências diferentes de pensamento, todos propondo a alteração radical da política fiscal e monetária. Bresser Pereira, Belluzo, Paulo Nogueira e André Lara Resende, apesar das abordagens diferentes, convergiram para a mesma proposta: aquisição dos títulos do Tesouro pelo Banco Central, para alocar recursos a fim de suprir as necessidades da política de saúde, de renda mínima para proteção social e crédito e garantia de crédito para as empresas.
A pandemia já deixou um rastro de déficits públicos por onde passou. Mesmo os países que dispunham de elevada capacidade ociosa em suas redes de hospitais para atender a população afetada pela Covid-19, entre os quais se destacam Alemanha e Japão, eles tiveram que acionar subvenções sociais e financiamento às empresas para mitigar os efeitos da ruptura do fluxo de negócios e o desemprego.
Inicialmente, para mobilizar recursos fiscais, os países adotaram padrões diferentes de financiamento da dívida pública. Nos Estados Unidos, o Tesouro e os bancos privados, desde a crise de 2008, têm emitido títulos para serem comprados pelo Federal Reserve em volumes elevados. Com a pandemia houve um crescimento de mais de 20% da dívida pública americana em apenas quatro meses. Essa política de expansão excessiva de moeda, desde 2008, para estimular a atividade econômica, passou a ser denominada quantitative easing.
A Inglaterra, agora na “Era Brexit”, tendo se libertado do Banco Central Europeu, revisou suas normas para adotar o quatitative easing nas situações de emergência. Na Europa Continental, onde todos estão submetidos às regras da mesma moeda, a capacidade de financiamento é diferenciada, mas mesmo assim foi aprovado um pacote de cerca de 2 trilhões de euros, cuja principal fonte de recursos é o Banco Central Europeu, adotando o mesmo padrão de financiamento americano.
No caso do Brasil, se fosse mantida a mesma política fiscal e monetária que vinha sendo operada antes da pandemia, submetendo a dívida pública exclusivamente à pressão do mercado financeiro, a política de baixas taxas de juros seria comprometida. O financiamento pelo Banco Central acabou sendo o caminho escolhido pelo governo para negociar com o Congresso Nacional a Emenda Constitucional 106.
Política fiscal e monetária pós-pandemia
A elevação dos gastos e da dívida pública não produziu inflação, não produziu efeitos significativos nas taxas de juros, não gerou expectativas negativas, nem desequilibrou mercados. Ao contrário, o desequilíbrio do mercado financeiro é que vem procurando socorro para se estabilizar com apoio das finanças públicas.
A política anacrônica do governo Bolsonaro e do ministro Paulo Guedes não se ajusta aos fatos históricos, mas se revela exclusivamente ideológica, e está dissociada de sentido prático. Os gastos extras com a Renda Mínima evitaram uma queda ainda maior do PIB. De acordo com as últimas notícias, o terror já está presente com as ameaças do ministro de radicalizar o corte dos gastos públicos na próxima fase, na qual a pandemia tende a ser menos danosa. A decisão de transferir recursos do FUNDEB e Precatórios, certamente não vai atenuar o processo de estagnação da economia brasileira, nem a continuidade da paralisação dos serviços e investimentos públicos ou mesmo reduzir o alto nível de desemprego.
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