Em meio ao crescente número de atingidos pelo novo coronavírus, os efeitos da pandemia sobre o mercado do trabalho começam a ganhar contornos mais definidos. Os dados mais recentes publicados pela OECD indicam que a taxa de desemprego no grupo formado pelas nações mais ricas alcançou os 8,4% em junho, ante 5,3% de janeiro desse ano. A Organização Internacional do Trabalho, por sua vez, divulgou que a massa de horas trabalhadas no mundo caiu 14%, o que equivaleria a 400 milhões de postos de trabalho. No Brasil, infelizmente, o cenário é mais desolador. Enquanto o número de horas trabalhadas reduziu-se 20,1%, algo equivalente a 15 milhões de empregos, o total de desempregados no país teve incremento de cerca de 8 milhões, de janeiro a junho de 2020.

A falta de maior clareza e coordenação das políticas contra-cíclicas anunciadas pelo governo federal só não se fez mais clara que a ausência de repertório mais amplo e robusto de políticas de proteção à vida e aos empregos. Possivelmente isso explique os números de nossa tragédia particular vivida até então. Segundo dados do IBGE, pela primeira vez em nossa história, em junho, apenas 49,5% da população em idade para trabalhar está ocupada, os demais estão “não-ocupados”, por isso o total de desempregados alcançou 12,7 milhões.

A taxa de desemprego saltou para 12,9% e só não foi maior porque pela metodologia adotada só são considerados desempregados os que procuraram emprego mas não encontraram. Quase 8 milhões de trabalhadores são classificados como “desalentados”, pois desistiram de procurar emprego por não acreditarem que irão encontrar. Se somarmos esses dois grupos chegaremos a mais de 20 milhões de desempregados.

A conformação do mercado de trabalho brasileiro sempre se mostrou desafiadora. Foi ao longo do período da industrialização que passamos a enfrentar os desafios derivados da super-oferta de mão de obra. Contudo, a incompletude desse processo associada às várias décadas de baixo crescimento econômico nos trouxe de modo muito precoce uma grande participação do setor terciário na estrutura ocupacional, em especial ramos marcados pela informalidade e baixa produtividade. A crise tem atingido mais profundamente os “serviços”. O tombo do emprego na agricultura foi de -4,5%, na indústria -10,1% e nos serviços chegou a -22,1%, principalmente em “alojamento e alimentação” (-16%,3) e serviços domésticos (-18,7%). .

Não se pode perder de vistas que esses setores são quase que totalmente dependentes do “ir e vir” urbano e muito sensíveis às variações de renda das famílias, notadamente as classes menos abastadas. Ademais, a informalidade obstaculizou o alcance das políticas de apoio implementadas pelos governos federal ou de unidades subnacionais. Esses fatores, e sendo o “home office” de pouca aplicabilidade nesse caso, explicam como milhões de pessoas foram postas em situação de grande penúria financeira e alto risco à saúde.

E nesse cenário, as desigualdades se mostram tanto determinantes, quanto resultantes do círculo vicioso em que a maioria dos brasileiros estão presos. Em nossas grandes metrópoles e periferias, o desemprego e súbita ausência de renda vai atingir com maior vigor justamente aquela parcela da população que vivia sob as mais duras condições socioeconômicas. E tal como observado e amplamente discutido nos EUA, a população negra é diretamente exposta aos dois maiores riscos da pandemia: morte e desemprego.

Como legado do passado escravagista, o Brasil exibe uma vergonhosa discrepância de qualidade de vida e oportunidade entre negros e brancos, que se assenta e alimenta uma estrutura social que senão racista de juris se escancara desde sempre como de facto e culmina em menor escolarização dos negros frente aos brancos. Por conseguinte, estes ocupam o mercado de trabalho em postos socialmente menos prestigiados, mais insalubres e de menor remuneração.

Paradoxalmente, se os negros testemunharam do dia para a noite o “desaparecimento” de seu ganha-pão em função das necessárias medidas de distanciamento social, por outro lado, grande parte dos trabalhadores essenciais (negros, também) foram chamados às ruas muitas das vezes sem a devida proteção ou compensação. Entre o medo do desemprego e o medo da morte, diversos profissionais da saúde (exceção aos médicos), garis, porteiros, pedreiros, domésticas, bombeiros e policiais militares, entregadores, cozinheiros e toda a sorte de “uberizados” e “precariados”, em sua maioria negros e negras, foram postos em situação de maior vulnerabilidade e risco à vida.

As informações a que se tem acesso mostram que o “home office” foi adotado majoritariamente em funções de mais alta escolaridade, fazendo desta uma não-opção à maioria dos brasileiros, dentre os quais os afrodescendentes. Ainda que haja déficit de informações sobre afetados por Covid-19 no Brasil por cor da pele, os dados existentes indicam que ao deixar de ser “doença de classe média” e alcançar os bolsões metropolitanos de pobreza, a pandemia tem atingindo proporcionalmente mais os mais pobres, leia-se, negros e negras. Dados da Fiocruz, para o período março-junho, apontam que enquanto 28% dos brancos hospitalizados por Covid-19 foram a óbito, esse percentual salta para 36% e 40% entre aqueles que se declaram pardos e negros.

Um dos pontos mais preocupantes desse cenário paira sobre os perversos efeitos de longo prazo dessa pandemia sobre a população negra: crianças e adolescentes negros mais impactados pela perda de trabalhos de mães e pais são os mais afetados na alimentação e educação. O atraso de infraestrutura nacional alia-se à desigualdade racial fazendo com que o ensino remoto penalize de maneira mais bruta os mais pobres. Sem atenção social e políticas públicas de apoio, podemos estar levando uma geração ao enfrentamento de maiores dificuldades no mercado de trabalho em sua idade adulta, tanto seja pela formação educacional, tanto pela saúde física e mental.