Um crash envolve sempre perdas e incerteza, mas o grande problema do capitalismo não é apenas esse, mas sim o de saber se existe ou não neste momento uma nova convergência de circunstâncias que permita ultrapassar as perspectivas depressivas recorrentes.
O crash das Bolsas na “segunda-feira negra” do último 5 de agosto revelou fragilidades que só podem ser inteiramente compreendidas à luz de um enquadramento de longo prazo. Com centro em Wall Street, as quedas rapidamente se propagaram pelo resto do mundo e foram amplificadas pelos movimentos especulativos dos mercados financeiros no Japão. Isto mostra que, mais de 15 anos após a crise de 2007/8, os riscos e os temores associados ao rentismo desenfreado não foram debelados e podem, a qualquer momento, ganhar novos contornos no contexto da economia mundial marcada por uma certa estagnação, pela desigualdade e pela pobreza. É verdade que as perdas de 5 de agosto foram parcialmente revertidas, que não há uma crise financeira global ou uma bolha especulativa em vias de arrebentar, como aconteceu nos anos 70 com as Nifty Fifty, ou com as empresas dot.com nos anos 2000. Mas, os receios nos perseguem.
Após o ciclo das taxas de juros muito baixas, que antecedeu os efeitos da pandemia da Covid-19 e o surto inflacionário mundial, os bancos centrais se viraram para uma política de taxas mais elevadas, com o objetivo de conter a demanda e a inflação. O único país que escapou a esta alteração foi o Japão, mantendo taxas de juros próximas de zero para contrariar as tendências para a estagnação que há muito afligem a economia deste país. Assim, floresceu o negócio especulativo do carry over, pedidos de empréstimos em yenes na banca japonesa a custo zero e sua aplicação em títulos americanos (ou brasileiros) remunerados a taxas muito mais elevadas. Isto provocou a desvalorização do yen face ao dólar e, por essa via, favoreceu as exportações japonesas. Porém, acabaram por se criar algumas pressões inflacionárias no Japão e o Banco Central foi conduzido, recentemente, a também subir as taxas, anulando as bases daquele negócio.
No mesmo sentido, aliás, jogou a pressão inversa para a queda das taxas de juros por parte da Reserva Federal americana ou do BCE, antecipada pelos agentes econômicos nos EUA face aos riscos de recessão. A fuga de capitais da Bolsa japonesa para compensar perdas e de Wall Street para fugir aos riscos de uma recessão (que parece não se confirmarem integralmente) geraram um certo pânico e o crash de 5 de agosto, seguido de recuperações parciais durante o resto da semana, aparentemente restabeleceu a confiança nos mercados. Mas, uma avaliação mais profunda do que está verdadeiramente em causa não pode deixar de preocupar os beneficiários do atual regime rentista, especulativo, porque há uma enorme incerteza acerca daquilo que poderá verdadeiramente retirar a economia mundial dos atuais sobressaltos e alimentar um ciclo longo de prosperidade econômica.
Uma das esperanças dos investidores é o ramo ascendente da Inteligência Artificial (IA), cuja relevância chega a ser comparada à da eletricidade durante o século XX, ou da Internet no início do século XXI. É uma gama de tecnologias que supostamente irá dar lugar a produtos que vão se tornar ubíquos (dominantes) até ao fim desta década, revolucionando a infraestrutura de todos os setores de atividade. Também porque não existem outras áreas suficientemente atraentes, está em marcha uma corrida ao investimento nas empresas que lideram este processo, Alphabet, Amazon, Apple, Meta Platforms, Microsoft, Nvidia e Tesla, as designadas Sete Magníficas, e o valor bolsista destas empresas subiu de forma acelerada, com destaque para a Nvidia. Porém, para além do ChatGPT, poucos resultados foram produzidos e a impaciência dos investidores fez com que alguns diminuíssem as suas participações, provocando uma queda na Bolsa das tecnológicas, que se adicionou às outras quedas no dia 5 de agosto.
Há uma grande tentação para assemelhar esta queda das Bolsas com o arrebentamento das bolhas especulativas dos anos 70, das chamadas Nifty Fifty (IBM, AT&T, Exxon, Eastman Kodak e GM), ou do ano 2000, com as dot.com. As semelhanças têm a ver com a natureza concentrada do mercado bolsista em torno das cinco maiores empresas nestas três épocas, representando entre 20% e 30%, o que, em contexto de queda, arrasta bruscamente a queda de todo o mercado. Isto para além de estarem em causa as empresas portadoras das tecnologias mais avançadas e mais lucrativas. Porém, as semelhanças ficam por aí, uma vez que as quedas da última “segunda-feira negra” foram muito menores que as das bolhas do passado e a dimensão da fragilidade destas empresas, no presente, também é muito menor. Recorde-se, por exemplo, que nas vésperas da bolha das dot.com, as cotações em Bolsa das tecnológicas chegaram a sofrer valorizações vertiginosas em momentos em que elas acumulavam prejuízos persistentes nos resultados operacionais. Isso, hoje, não acontece.
Porém, subsiste uma dúvida decisiva para o futuro próximo do capitalismo contemporâneo – “será que a IA é mais que um objeto brilhante que o setor está perseguindo para trazer de volta os seus sonhos de crescimento sem fim, antes de abandoná-lo e partir para próxima grande novidade”, ou estamos realmente perante uma oportunidade tecnológica e econômica consistente capaz de mobilizar os investidores que buscam desesperadamente oportunidades de aplicação mais rentável para além da pura especulação financeira? Quando um setor de atividade como a IA, que mobiliza as atenções e bilhões de dólares (o valor de mercado das Sete Magníficas supera o PIB conjunto da Alemanha, Reino Unido, França e Itália) de investimentos em data centers e semicondutores, necessários para acomodar os modelos e os produtos prometidos nos últimos 18 meses, se questiona desta maneira, algo pode estar errado quanto à consistência das expectativas que estimulam este mercado.
Um crash envolve sempre perdas e incerteza, mas o grande problema do capitalismo não é apenas esse, mas sim o de saber se existe ou não neste momento uma nova convergência de circunstâncias que permita ultrapassar as perspetivas depressivas recorrentes, relançar duradouramente o investimento e contrariar a tendência para a queda da taxa de lucro. O endurecimento dos regimes políticos, numa lógica bonapartista de extrema direita, que se insinua em países como os EUA, não se destina apenas a favorecer a super exploração dos trabalhadores que, aliás, o próprio neoliberalismo já assegurou. Tudo aponta para a eclosão cada vez mais frequente de conflitos e de guerras localizadas, que implicam o reforço dos orçamentos de cada país na área da defesa e do seu arsenal militar. Tal como no passado, a destruição de forças produtivas associada à guerra, o investimento massivo no arsenal bélico e as possibilidades de reconstrução futuras podem ser a chave para a recuperação capitalista. A esquerda tem de intervir de forma esclarecida neste clima de pré-barbárie que se anuncia. (Publicado por Esquerda.net, em 15/09/2024)
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli e Tradução para o português do Brasil: Celia Bartone
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