Crepúsculos da democracia “O Narco é um modelo de ascensão social e conquista de poder… Um modelo individual: para ascender não adianta tentar subir o patamar que todos ocupamos;
para ascender você tem que usar as cabeças dos seus semelhantes como escada.
Mas, mesmo assim, você não esquece seus semelhantes.”
De Namérica de Martin Caparrós
I
De novo, sou obrigado a confessar minha ignorância (ver meu artigo Seduzidos pelo Demônio): nunca havia visto ou ouvido falar de um aparentemente muito conhecido comentarista da rede americana CNN no Brasil chamado Caio Copolla. E se o cito aqui é porque meio que ao acaso me deparei com uma declaração sua sobre o multimilionário Elon Musk durante a qual ele, o comentarista, esteve (ou assim me pareceu) à beira do orgasmo. Sei muito bem que Musk, e figuras assemelhadas do capitalismo do século XXI, tendem a provocar reações desse tipo e com certa frequência – sintoma, talvez, da libido ultraliberal. São, pelo menos, figuras de culto e reverência quase religiosa, autênticos heróis da sociedade do capital. E Musk é justamente um dos temas deste artigo, que segue acompanhando esses seres encantados paridos pelo mundo próspero (a expressão é da ensaísta americana Susan Sontag). Essa a razão pela qual também sou obrigado a novamente lembrar (e ampliar) a epígrafe do artigo anterior, sobre “…um fulano que ainda jovem inventou um negócio, controlou-o durante anos, se permitiu todos os luxos…, lançou-se na política, deu casas e coisas aos pobres, trouxe dinheiro aos montes, empregou milhares de pessoas (…). O Narco – o Narco por excelência, o Grande Narco – se havia constituído num herói social, o ideal do homem com colhões e que graças a esses colhões havia chegado onde tantos queriam” – descrição do traficante colombiano Pablo Escobar em Namérica de Martín Caparrós. Não faz muito tempo, informa ainda Caparrós em seu livro, a Prefeitura de Medellín decidiu dinamitar a casa de Escobar na cidade “porque havia se transformado num lugar de peregrinação ou de turismo…”. (Em 1993, ano da morte de Escobar, a Colômbia tinha 100 mil hectares de cultivo de cocaína. Dez anos depois havia baixado para 80 mil hectares e assim permaneceu até 2010. De 2010 a 2019, no entanto, quase triplicou a área cultivada, subindo para 212 mil hectares. O Negócio segue prosperando, independentemente dos chefes que a controlam e das políticas que supostamente tentam acabar com ela.)
II
Repetir a epígrafe usada no artigo sobre o coach brasileiro Pablo Marçal neste texto sobre Elon Musk não é casualidade ou acidente. Mas, na aproximação, ainda que de caráter simbólico, entre o mega traficante e os dois outros personagens, uma observação precisa ser feita: são de todos conhecidas as obras sociais realizadas por Pablo Escobar na Colômbia, que tinham por objetivo a um só tempo beneficiar populações necessitadas das áreas operadas pelo tráfico e pavimentar o caminho do chefe traficante para a política. Não se pode dizer o mesmo dos outros dois personagens. É verdade que ambos também se decidiram se meter na política, cada um ao seu modo e de acordo com suas próprias dimensões. Mas nem um nem outro demonstraram, pelo menos até agora, qualquer tendência ou apego para realizar obras sociais em benefício de populações necessitadas e assim pavimentar suas carreiras ou influência política. (Quem sabe haja aqui alguma injustiça com o sul-africano, já que recentemente começou a entregar cheques de um milhão de dólares a eleitores do parceiro Donald Trump escolhidos aleatoriamente. Esses cheques serão entregues diariamente até o dia da eleição, em 5 de novembro, a votantes individuais registrados em estados-chave e que assinem uma petição orientada ‘a apoiar a Constituição dos Estados Unidos, especialmente o direito à liberdade de expressão e o direito de portar armas”.)
III
O volume de dinheiro que Musk está injetando na campanha trumpista seria escandaloso não fosse já tradicional nas eleições americanas. Setenta e cinco milhões de dólares até o momento. Mas há até quem tenha generosamente doado mais. Uma tal de Miriam Adelson, que assumiu os negócios quando o marido Sheldon Adelson, empresário de jogos de azar de Las Vegas, morreu, doou 100 milhões de dólares através do seu grupo Preserve America. Timothy Mellon foi além e aportou 125 milhões. Até aí, nada demais. Assim funciona a democracia ao estilo americano. O dono da rede social X, no entanto, não é apenas um influente doador, como os outros. Ele está metido de corpo e alma na campanha de Trump. Participa de seus comícios e o promove na sua rede social. Parece estar um passo adiante na escancaradamente promíscua relação entre os interesses empresariais e a gestão dos negócios públicos que caracterizam a política na sede do Império. Tornou-se ele mesmo um ator político nos Estados Unidos e em escala mundial – em pouco menos de um ano teve pelo menos dois encontros privados com o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu, em novembro de 2023 e em julho de 2024, quando Netanyahu discursou para o Congresso americano. E isso é apenas um exemplo. Musk não está só fazendo negócios e promovendo os interesses de suas empresas de alta tecnologia. Ele está fazendo isso também, é claro. Talvez sobretudo isso. Há até comentaristas dizendo que o principal interesse de Musk na eleição de Trump está na necessidade de proteger a Tesla frente ao crescimento da indústria chinesa de carros elétricos no mercado americano (sic). Como se tal estímulo fosse necessário para a atuação do ex-presidente contra os competidores comunistas. Evidentemente, sua aproximação responde a estratégias bem menos pueris que a sugerida pelo comentarista. Seja como for, a par e passo trata de promover as ideias e os sentimentos, o caldo de cultura da ultradireita e se vincular aos personagens que em cada país mais ou menos os representam, seja Netanyahu, os neonazistas do AfD (Alternativa para a Alemanha) ou Bolsonaro.
IV
No seu último livro Doppelganger – Uma viagem através do mundo-espelho, a ensaísta canadense Naomi Klein a certa altura lembra que após comprar a rede social Twitter (em outubro de 2022, por 44 bilhões de dólares), o homem mais rico do mundo a transformou da noite para o dia numa máquina de vingança. Máquina de vendettas e, sobretudo, de atuação política. Para alguns analistas, “um território sem lei, onde o ódio, a supremacia branca e as mentiras correm soltos.” Chegados a esse ponto, não há como não chamar a atenção para a existência dessas fortunas aberrantes e obscenas que se tornaram foco das atenções nesse primeiro quarto do século XXI (ver o artigo A História de um Assalto ao Palácio, 18/02/24). Um nível de acúmulo de riqueza e concentração da renda nunca visto e talvez sequer imaginado na história do capitalismo desde seu nascimento. A fortuna de um único homem, aos 53 anos de idade, pode ser quantificada em números (205 bilhões de dólares em outubro de 2024, segundo publicações especializadas), mas dificilmente pode ser dimensionada pela grande maioria dos cidadãos. Além dos carros elétricos e da X, controla empresas da indústria aeroespacial e uma rede global de satélites (Starlink) e empresas de neurotecnologia que trabalham com interfaces cérebro-computador. Também é um dos fundadores de uma companhia de inteligência artificial. Um conglomerado apto a meter o bedelho diretamente na vida de cada cidadão ou Estado em cada canto do planeta. Como diz um artigo recentemente publicado na Político, Musk “acredita que os avanços tecnológicos são o catalisador para conduzir a humanidade a um futuro glorioso”, enquanto muitos dos seus críticos, segundo ainda a revista, “acreditam que, sem um forte controle democrático, podem criar um ciclo de destruição autojustificado que serve apenas os interesses dos criadores de tecnologia e dos seus parceiros comerciais”.
V
Esse futuro vislumbrado por empresários como Musk parece já estar com as raízes fincadas no ecossistema do qual se originou, o capitalismo do século XXI, e prospera com a aceleração de um foguete da SpaceX. Seus múltiplos subprodutos são como a infindável parafernália de mercadorias enfiadas dia a dia na goela dos consumidores. De mentiras fabricadas em série a coaches, de drogas para acelerar as vontades a drogas para curar a depressão e o vazio, de turismo espacial para bilionários a redes para capturar fanáticos seguidores dos heróis que os conduzem. Os instrumentos com que contam hoje e contarão daqui para diante as forças da ultradireita são afiados no dia a dia da infernal criatividade desses ultracapitalistas. O céu parece ser o limite – ou quem sabe, não.
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
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