Não me parece que tenhamos livre arbítrio suficiente para escolher algo que promete um futuro melhor em troca de sacrifícios no presente. Temos mais neurônios no intestino do que no lobo frontal do cérebro.

Para Renato Las Casas

Entendo que ciência é um dos métodos de conhecimento do mundo, que se desenvolveu principalmente nos últimos 500 anos, junto com uma das variantes humanas de organização social chamada capitalismo. Nesse período, a ciência tem sido intensamente utilizada para produzir tecnologias que aumentam o poder das elites dominantes para exploração do planeta e a acumulação de capital. Mas também tem sido fonte de conhecimento humano sobre a natureza, o universo e a vida. Quando a ciência é aplicada para se transformar em tecnologia a serviço da produção de bens e serviços, ela possui ampla credibilidade, pois a maioria das pessoas confia nos resultados ao utilizar medicamentos, automóveis, aviões, combustível fóssil, alimentos geneticamente modificados, internet e inteligência artificial, pois a ciência, nesse papel tecnológico constitui “a certeza”.

Por outro lado, quando a ciência é utilizada para investigar nossas dúvidas sobre a origem do universo, da vida, da evolução das espécies, da história das sociedades, dos comportamentos humanos e das desigualdades sociais, ela é considerada apenas como uma “narrativa”. Quando o capital percebe que a “narrativa” pode se transformar numa fonte de lucro ou poder, ela ganha
credibilidade da tecnologia: veja a relatividade de Einstein se tornando bomba nuclear e as bradicininas do professor Beraldo virando medicamentos para controlar a pressão alta.

Portanto, quando a ciência é útil e reforça o modo de vida atual e dominante, ela é bem-vinda e glorificada como uma das maiores conquistas da humanidade. Quando os resultados do método científico trazem dúvidas sobre nosso modo de vida ou de produção, ela é desqualificada como sendo apenas “teorias” confusas e incompreensíveis produzidas por cientistas excêntricos e que mudam de ideia a todo momento.

Os níveis de confiança também dependem da formação científica básica da população. Por exemplo, é mais fácil confiar no medicamento produzido por uma indústria farmacêutica para “combater” (um termo militar) um câncer, do que na vacina contra a Covid produzida pela mesma indústria, pois compreender o funcionamento da vacina envolve modelos científicos mais complexos sobre genética, imunologia e os limites biológicos entre os seres vivos (ver aqui mais informações sobre esta contradição).

Assim, as informações científicas (tecnológicas) sobre possíveis reservas de petróleo no fundo do mar são levadas a sério pelas grandes companhias petrolíferas, de tal forma que elas podem destruir democracias com golpes de estado para se apropriarem daquelas reservas. As mesmas companhias petrolíferas, por outro lado, vão dizer que as informações científicas, que mostram o consumo de combustíveis fósseis como a principal causa da crise climática, não passam de especulações catastróficas de cientistas esquerdistas e não podem ser levadas a sério. Perfure, baby, perfure e consuma!

Então, apesar de há décadas cientistas independentes demonstrarem, uma parte da população não acredita na crise climática em andamento porque, no mesmo período, outros cientistas contratados de forma articulada pelo grande capital semeiam dúvidas sobre o aquecimento do planeta, para evitar que o modo de produção e consumo atual seja interrompido ou mesmo diminuído. Quais são as informações científicas sobre a crise climática que incomodam tanto os donos do poder?

Primeiro, o aumento progressivo e combinado da temperatura e da variação da temperatura, que vem acontecendo na superfície do planeta, aumenta a chance de eventos climáticos extremos. Estes eventos, como inundações, secas, incêndios, furacões, derretimento das geleiras, desertificação e alteração da geografia costeira podem levar a grandes alterações nas relações entre as diferentes formas de vida, incluindo a humana. Por exemplo, redução das plantações de alimentos com fome generalizada e aumento das doenças transmitidas por insetos.

Em segundo lugar, a ação humana é a causa deste aumento da temperatura do planeta. Sabemos (cientificamente) que estamos modificando o planeta desde que surgimos como espécie porque, como qualquer ser vivo, precisamos alterar o ambiente para sobreviver, retirando dele nossos alimentos e devolvendo a ele nosso lixo, mas este ciclo era realizado de forma relativamente sustentável enquanto éramos menos de um bilhão de indivíduos.

Durante milhares de anos, algumas das variantes humanas de organização social dos povos originários deram tempo para a recuperação da natureza nos diferentes nichos ecológicos aonde chegávamos. Outras variantes sociais se mostraram predadoras, como aquelas que aportaram por aqui, onde hoje chamamos de Minas Gerais, há uns 10 mil anos, extinguindo a preguiça gigante, os tigres dentes de sabre, o cavalo americano, o mastodonte entre outras espécies. Um trabalho de extinção sistemática, inclusive dos povos indígenas, que vem sendo completado pelas mineradoras de diamantes, ouro e ferro desde a invasão portuguesa, que armazenam o sangue pisado do solo em barragens de Marianas e Brumadinhos.

Nosso impacto tem sido tão importante no planeta que alguns cientistas propõem o nome de Antropoceno para o novo período geológico que se iniciaria no fim da Era Glacial, há cerca 13 mil anos.

Terceiro, embora esta exploração humana do planeta vinha crescendo lentamente, nos últimos 500 anos do capitalismo ela apresentou uma aceleração tremenda a partir do final da Segunda Guerra Mundial, em torno de 1950. Desde então, todos os indicadores dos fatores que aumentam a temperatura média dispararam de forma exponencial, assim como os efeitos do
aquecimento global sobre o meio ambiente. A relação científica causal entre capitalismo e aceleração da crise climática é evidente e somente não vê quem não quer (ou não pode) diminuir seus lucros com a situação atual.

Quarto, o ritmo de crescimento econômico atual não é sustentável do ponto de vista do planeta e precisaríamos reduzir o consumo de tudo: não dá para 7 bilhões de pessoas comerem picanha ou levarem uma vida no padrão da classe média americana como prometem líderes políticos para manter a ilusão do crescimento infinito, que é fundamental para o capitalismo. A nossa plataforma do Partido do Luxo Para Todos deu ruim. Então, o que fazer? Algumas pessoas otimistas pensam que a mesma ciência que acelerou a exploração do planeta e nos trouxe a crise, poderia criar tecnologias capazes de nos salvar da crise climática. Será?

Para nos mobilizarmos de forma eficiente para pressionar governos e o grande capital no sentido de reduzirem o crescimento econômico, teríamos que acreditar nas informações científicas sobre a crise climática. E acreditar na ciência pode ser incômodo para grande parte da humanidade. Basta lembrar que 70% da população acreditam em escrituras sagradas, deuses e religiões que entram em conflito com as nossas origens por meio da seleção natural de Darwin.

Para aderirmos à ciência climática, teríamos que reconhecer que precisamos reduzir também o nosso consumo individual. Quantas pessoas estariam dispostas a renunciar ao sonho de riqueza futura ou à chamada “cadeia de carbono”? Carros grandes, combustível fóssil, carne cotidiana, consumismo, cruzeiros marítimos, classe executiva, comércio internacional de supérfluos,
câmbio dolarizado… Capitalismo!

Cadeia de carbono = C+C+C+C….+C = Capitalismo = Crise Climática

Além disso, não me parece que tenhamos livre arbítrio suficiente para escolher algo que racionalmente promete um futuro melhor em troca de sacrifícios no presente. Temos mais neurônios no intestino do que no lobo frontal do cérebro. O que vai acontecer? Imagino que a crise climática, que já está ocorrendo, irá se agravar e provocar um colapso de uma ou mais dentre as diversas variantes do capitalismo selvagem (americano, chinês, russo, europeu, dos países colonizados). Não imagino um tempo de paz neste colapso. Como darwinista amador que sou, aprendi que a evolução acontece a partir das formas de vida anteriores, dos esqueletos, literalmente, das espécies menos adaptadas aos novos ambientes. Assim, imagino que algumas variantes de organização social humana novas (ou já existentes e minoritárias) se revelem capazes de manter a sobrevivência de populações humanas nas ruínas que estamos deixando neste planeta.

Essas novas variantes de organização social humana precisarão superar o capitalismo, conservando conhecimentos desenvolvidos nesse período, como a ciência, mas dando outro sentido para eles, que não o lucro, mas a felicidade humana. Espero que sejam variantes de economia sustentável e em harmonia com o ambiente. Que sejam pacíficas, igualitárias, feministas, sem racismo, sem competição e sem meritocracia, sem forças armadas, sem fronteiras e sem propriedade privada dos meios de produção. O chapéu e os óculos continuarão sendo propriedade privada, a terra seria de todas e todos, inclusive das formas de vida não humanas. Seriam variantes socialistas. Por isso, acho que sou um socialista evolucionário.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.

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