Farândola é um termo pouco usado no Brasil. Em espanhol sofre uma leve variação, farandula. Diz respeito ao ambiente e profissão de pessoas que trabalham com entretenimento, mais remotamente ao mundo das pessoas do teatro, mas também ao mundo da súcia, de bando. O mundo da política contemporânea foi invadido pelo entretenimento, por uma lógica teatral cujo sentido básico é satisfazer uma audiência. Se antes o entretenimento tinha o propósito de nos distanciar da dureza do cotidiano, hoje tem o propósito de suavizar e dispersar os problemas. A morte, a dor e a agonia podem ser expostas como espetáculo.
A aproximação entre políticos e farândola e a lógica do entretenimento estavam em quase simbiose com Berlusconi e Menen. E há momentos em que as duas figuras se confundem, como em Donald Reagan, um ator, e Trump, empresário ligado ao lazer, turismo e especulação imobiliária. Aos poucos ocorreu um deslizamento em que a face relativamente amena cede a formas neofascistas, produzindo um efeito próximo ao fascismo clássico, mas sem a seriedade pretendida por esses, a face se torna burlesca e violenta. A recente invasão do Congresso norte-americano tem esse caráter, o mesmo com milicianos em manifestações defronte ao Supremo ou nas bizarrices das manifestações pré-golpe.
A dramaticidade da crise sanitária em Manaus, que se estenderá a outros estados e cidades de forte densidade demográfica, acelerou a conjuntura política. O grotesco poderá, nas próximas eleições presidenciais, ser substituído por formas mais amenas de sedução, que traduzam um sentido enfraquecido de cidadania, condizentes com uma dominação burguesa neoliberal, corporificada em candidatos que assumam certa piedade autenticamente hipócrita ao ponto de acreditarem na sua atuação.
A carranca odiosa de Bolsonaro, a cerrar as mandíbulas num esgar de ódio concentrado, a despejar toda sorte de insultos entendido por muitos como um traço de autenticidade, cercado de áulicos e por vezes de uma farândola macabra, talvez venha a ser substituída por Dória, que inclusive tinha programa de televisão em que imitava Trump, mas hoje em fase de transmutação. De Bolsodória a Dória, a borboleta piedosa preocupada com o destino da cidadania fustigada pela ameaça da morte por sufocamento.
Com enorme senso de oportunidade em ato de vacinação inaugural e entrevista com presença de correspondentes estrangeiros, Dória se lançou como candidato presidencial alternativo a um Bolsonaro aferrado ao negacionismo e obrigado a ceder em alguma medida à vacinação. E isso após retornar celeremente de Miami, ao término das eleições municipais, em fase crítica da pandemia, onde pretendia gozar uns dias de merecido descanso em sua mansão.
Luciano Huck é outro candidato (por enquanto discreto), com poucas chances, áulico até pouco tempo de Aécio Neves, a quem abriu salões organizando jantares exclusivos à farândola nacional, tarefa facilitada por ser apresentador de programa de entretenimento sábados à tarde, no qual distribui benesses, num simulacro de políticas públicas. Tinha estreito relacionamento com Alexandre Accioly, tido como laranja de Aécio, hoje desterrado como apagado deputado federal, ainda que blindado depois de várias denúncias de corrupção. Uma decepção para Luciano Huck, ao ponto de dolorosamente apagar nas redes qualquer traço de proximidade.
Em outros momentos houve esboço de seu lançamento como candidato à presidência, o que não foi adiante. De qualquer forma tem tomado iniciativas como conclamar recente panelaço contra Bolsonaro, apoiado pela Rede Globo e por liberais conservadores dissidentes da nova geração. Cultiva uma imagem de jovem exitoso, empreendedor e atento às necessidades populares. Como disse a bordo de seu iate, em viagem comemorativa de aniversário com sua família, em “avalanche de carinho”: “é o melhor combustível para seguir em frente tentando contribuir para que o mundo seja melhor para todos”. Um estadista, bem formado em think tanks financiados por milionários, e para orgulho e inveja da farândola, também por bilionários. Todos citados em listinhas de fim de ano, para gáudio da plebe.
Esses são os personagens, talvez passageiros, que se apresentam como alternativa, no campo liberal conservador e suas variantes, à Bolsonaro. Mas o que temos para além do manto diáfano da fantasia tentando cobrir as misérias nacionais?
O uso político da epidemia combinado com a inépcia e ausência de políticas nacionais, mais o negacionismo – agora fragilizado depois da liberação imediata pela Anvisa das vacinas da Fiocruz e Butantã -, o fato de o governo saber dez dias antes da previsível crise de fornecimento de oxigênio aos sobrecarregados hospitais de Manaus e pouco fazer, desgastaram muito a imagem das Forças Armadas e de seu general ministro da Saúde. A isso somaram-se os fracassos das gestões com a Índia e China quanto ao fornecimento de insumos e vacinas, além de ter se recusado a participar da aliança mundial Covax – coalização de 165 países para a compra conjunta de vacinas, que protegeria 50% da população brasileira. O governo, desde 2020, se opôs à quebra de patentes de insumos, defendida pela Índia, acompanhando a posição da OMC, o que impede o abastecimento global de imunizantes.
Em relação à China, os ataques foram recorrentes desde que Bolsonaro assumiu e acompanhou caninamente a posição trumpista. A produção brasileira – muito insuficiente para atender às necessidades mesmo no que diz respeito aos grupos de trabalhadores da saúde – resulta de acordos do Butantã com a empresa Sinovac, da China, e da Fiocruz com AstraZeneca, desenvolvida com apoio da Universidade de Oxford. A liberação emergencial da vacina russa Sputnik V da União Química, responsável pela produção na América Latina, está em discussão.
Ao fundo: a crise econômica, estagflação, avanço da desindustrialização, o crescimento exponencial da dívida pública, o desemprego, a fome, o desespero das massas e de parte da classe média que empobrece a olhos vistos. Setores das elites econômicas percebem que o barco está praticamente à deriva. O impeachment, que parecia distante, senão difícil, mesmo aos olhos da esquerda, surge para esses setores como possível solução, desde que devidamente controlado e que se prossiga o projeto neoliberal, mesmo sem Guedes. Assim sua vanguarda procura se antecipar. A Globo elevou o tom contra Bolsonaro, jornalistas e atores da rede passaram a defender o impeachment.
Caso haja cassação da chapa (hipótese remota), a eleição será indireta, sonho dourado do DEM, PSDB e setores do MDB. Poderia reeditar pelo alto o pacto que imperou na eleição indireta de Sarney, agora em condições mais dramáticas. A depender da aprovação do impeachment, pode assumir Mourão, uma alternativa que aos olhos de milhares de militares ocupando cargos públicos pode ser mais interessante, somados aos delirantes que veem comunistas em tudo que é canto.
E nem se pode desdenhar de reação miliciana, com apoio de militares subalternos e policiais militares. Foram liberadas no ano de 2020, 180 mil licenças de compra de armas. Milícias, esse universo em expansão com laços nas policias militares do país, nas policias civis e setores subalternos do exército, se modernizam. A intenção de associações das polícias militares e de Bolsonaro é retirar dos governadores o já tênue controle sobre essas forças.
As milícias têm sido, por enquanto, toleradas, pois talvez tenham serviços a prestar. As forças armadas, usufruindo privilégios orçamentários, soldos e aposentadorias privilegiadas e milhares de cargos no governo, parecem acomodadas. Neles, muitos reeditam a pasmaceira oportunista do coronel Madureira, personagem inesquecível de Marques Rebelo. Porém são muitíssimo sensíveis à defesa do Exército, essa entidade que dizem pairar acima das torpezas civis, como ficou demonstrado na carta exigindo retratação da revista Época, do grupo Globo, pelo artigo que publicou recordando atos nada democráticos e republicanos praticados no decorrer da história brasileira. Um dia após, Bolsonaro reforçou a gentil carta, afirmando que a democracia era uma concessão das Forças Armadas, enquanto se sentissem respeitadas.
A intervenção mais decisiva das oposições nas ruas a favor do impeachment ainda encontra limites devido à pandemia, que tem sido usada como uma arma política. O atraso na imunização tem suas conveniências. Declarações do Procurador Geral da República, Augusto Aras, mostram a incerteza política ao dizer que o estado de calamidade – parcialmente em vigor – é a antessala do estado de defesa, um instrumento a ser aplicado de forma localizada em caso de grave insegurança institucional ou de calamidades de grandes proporções na natureza. Pode ser decretado ouvido os Conselhos da República e da Defesa Nacional, é de aplicabilidade limitada a 30 dias (renovável uma única vez), e deverá ser apreciado pelo Congresso no prazo de dez dias, podendo rejeitá-lo. Restringe direito de reunião, sigilo de correspondência e de comunicações, admite prisões, entre outras medidas. E para coroar, reforçou: vou aliviar Bolsonaro. Assim veda de antemão qualquer possibilidade de a Procuradoria denunciar crimes comuns de Bolsonaro – denúncia de crimes é atribuição constitucional do Procurador.
Crime comum, segundo o STF, abrange “todas as modalidades de infrações penais, estendendo-se aos delitos eleitorais, alcançando até mesmo os crimes contra vida e as próprias contravenções penais”. Contra a vida foram inúmeros os crimes expressos em omissão e declarações falsas sobre a pandemia. A denúncia formalizada pelo Procurador seria apreciada pelo STF. A condenação acarreta suspensão de direitos políticos e cassação imediata do mandato. A reação de subprocuradores foi instantânea, reafirmaram corajosamente as atribuições constitucionais da Procuradoria e listaram os crimes praticados.
O governo de Bolsonaro, acossado, contra ataca. Sabe que os acontecimentos recentes repercutirão nas eleições para a presidência da Câmara, que assume maior importância pelo risco de impeachment. A percepção de que haverá queda ainda maior de prestígio – já perceptível na última pesquisa da XP – o conduz a reconsiderar a continuidade por algum tempo do auxílio emergencial, mesmo ao custo de possiveis conflitos com a área econômica. Já existem projetos nesse sentido da oposição na Câmara.
Em gesto na busca de sobrevivência, a carta de aproximação com Biden, tenta romper o isolamento internacional, resultado da absoluta subserviência em relação a Trump, abrindo espaço a um acordo de livre comércio com os EUA. Uma reedição da antiga Alca, que fracassou devido à oposição do Brasil e da Argentina à época. Talvez nesse transe, no desejo de aplacar a fúria dos deuses, sacrifique Salles pelo desastre ecológico, Araújo pelo desastre diplomático e o general Pazuello, o mestre da logística na saúde; esse de forma a não ferir os brios na caserna. Provavelmente isso está de antemão facilitado: Pazuello é general da ativa. Pode ser catapultado de alguma maneira para algum comando de relevância.
O futuro imediato não é nada fácil. Exigirá muito do campo da esquerda: rapidez de reorganização e capacidade em exigir um processo de impeachment que resulte em saída rápida do Inominável e cúmplices imediatos que adoecem e sufocam o país, responsabilização pelos atos criminosos contínuos e abandono do modelo econômico que destrói o país. Movimentos sociais e partidos políticos esboçam ações mais incisivas. A tempestade se inicia. Em futuro próximo, haverá a sobreposição do manto diáfano da fantasia no corpo da República em frangalhos? A refundação da cidadania? Ou o horror no coração das trevas? Os ventos parecem favorecer a fantasia. Parecem.
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