Crença, pela primeira vez escrevo sobre ela. Palavra ligada à religião, não goza de bom conceito no mundo das ciências.
Esta é a primeira vez que escrevo sobre a crença, fé. Logo, pergunto por que agora e não antes, e me ocorre, sem pensar muito, que foi por preconceito. Crença é uma palavra ligada à religião, e essa palavra não goza de bom conceito no mundo das ciências, do conhecimento em geral e também na Psicanálise. Comecei a diminuir alguns preconceitos ao longo do tempo, mas algum sempre sobra. Em Buenos Aires, na década de setenta, recebi uma analisanda de nome Clara. Ela era psicanalista há bom tempo, tinha uns sessenta anos, ou seja, havia uma diferença de idade e de experiência. Fora encaminhada pelo diretor do centro clínico onde trabalhava, e nunca perguntei por que havia me encaminhado. Fiquei contente e inseguro.
Nos primeiros meses, fui cauteloso, convém ser, além do que Clara sabia muito mais do que eu tanto de Psicanálise como da vida. Havia muita diferença de idade, e ela já havia feito duas análises com analistas conhecidos. Já eu era um analista jovem, logo, ficar mais na atitude de escuta foi prudente. Aos poucos, fui arriscando um ou outro comentário e percebi que podia ajudá-la. Nunca se atrasava e sempre tinha muito para contar dos filhos, de seu esposo que estava doente, de seus analisandos. Tinha a impressão de que ela não se inquietava como eu pela diferença de idade, pois o amigo que a encaminhou despertou nela confiança. Aliás, a confiança que eu tinha pouco, ela foi me dando e fiquei aliviado. Após um ano ou mais perguntei, a ela sobre seu nome, se sabia a história dele. Clara se surpreendeu com a pergunta, mas logo começou a contar. Antes de nascer, sua mãe teve uma menina que morreu logo, e sua mãe passou a ir à igreja Santa Clara onde fez uma promessa. Se nascesse uma menina iria pôr o nome de Clara, portanto, ao longo da gestação, sua mãe foi todos os dias à Igreja rezar e repetir a promessa.
A partir daí, aos poucos, contou que rezava todas as noites antes de dormir. Logo, se abriram portas e janelas sobre sua vida. Um dia, perguntei se estava falando sobre seu nome pela primeira vez, bem como suas rezas, pois a vi emocionada. Disse que sim, e perguntei se estava falando pela primeira vez sobre suas rezas à noite, e disse que sim. Ficamos os dois surpresos, mas Clara logo disse que se sentia envergonhada de contar sobre suas rezas, e nem para suas colegas contara. Ela havia tido uma educação católica de sua mãe e tias, ia todo domingo na Igreja, participava das festas religiosas, se confessava até quase a idade adulta.
Fiquei surpreso, pois ela revelou uma vergonha de falar de suas crenças no mundo psicanalítico. É certo que faz muito tempo tudo isso, mas não sei o quanto esse mundo da cultura mudou sobre a fé e a religião. Então pensei que as marcas da infância, as minhas incluídas, não poderiam desaparecer como magia, além do que tem meu nome bíblico. Comecei a me interessar pelo tema da Psicanálise e Religião, para pensar por que a crença podia ser tão poderosa. Creio que a fé, não só a religiosa, mas a fé que se tem no amanhã, a fé que a gente precisa ter em si, nos amigos, amores em geral é essencial para se viver. Não penso na fé cega, já que essa fé é perigosa, ainda mais quando e gente a tem em si mesmo, pois aí, sem saber, se passa a ser um arrogante que se imagina sempre certo. Imagino que a fé se associa a esperança que não exclui a importância de questionar. Tardei em escrever algo da história de Clara, aos poucos percebo o quanto a psicanálise tem, o que mais tem, são histórias para contar.
P.S. Feliz ano novo para todas, todos, todes mais atual, e desejo saúde e um país, um mundo com menos injustiça social e menos guerra. Muito obrigado por me estimularem a seguir escrevendo, gratidão pura.
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Ilustração: Mihai Cauli
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