“Oh, qué gritos se sentían / por encima de las casas!” (Federico García Lorca)
As democracias em risco
As democracias liberais estão em risco. Por décadas atribuiu-se a ameaça à crise de representação, abalada por escândalos de corrupção nos dois hemisférios. A novidade do livro do professor norte-americano de Filosofia Política, Michael J. Sandel (A Tirania do Mérito, 2020), está em apontar a responsabilidade da meritocracia pelo espectro de destruição que paira sobre os regimes democráticos. “Humanos, embora nascidos para voar, por que caem a um sopro de vento?”. Nunca a indagação na Divina Comédia, a obra imortal de Dante Alighieri, nascido no longínquo século XIII, foi tão atual. A resposta à queda de tantos no círculo do inferno não tem a ver só com as condições sociais de nascimento, o que não é mérito ou demérito nenhum, pois ninguém é totalmente senhor de sua sina como agente moral do destino. Tem a ver com as consequências indesejáveis e nefastas de uma sociedade erguida sobre os controversos alicerces meritocráticos.
A guinada civilizacional provocada pela hegemonia do neoliberalismo, a partir dos anos 80, substituiu a criação de produtos industriais pelo gerenciamento de investimentos nas Bolsas de Valores. As recompensas destinadas aos gestores de fundos, acionistas de megaempresas e banqueiros, conquanto desproporcionais à sua produtividade social, ultrapassaram de maneira astronômica os dividendos auferidos por aqueles que orbitam o trabalho, no sentido tradicional da produção de bens e serviços. O acirramento das desigualdades que dividem o mundo entre “ganhadores” e “perdedores” mergulhou em descrédito as promessas de repartição dos ganhos. A ideia de que o fracasso advém da apatia, da incompetência ou da má índole desembocou em um revanchismo político. “Quatro décadas de globalização favorável ao mercado esvaziaram o discurso público, tirou o poder dos cidadãos comuns e incitou uma reação populista (leia-se, direitista, com raízes populares) que busca munir a praça pública de um nacionalismo intolerante e vingativo”, escreve Sandel.
A expressão American First traz embutido o aceno ao resgate do self made man, da crença na possibilidade de vencer pelo esforço e talento. A realização profissional para quem trabalha arduamente esfumou-se. O “sonho americano” simbolizado pelo Tio Patinhas, nos primórdios do capitalismo, baseado na ascese protestante que unia trabalho e poupança, não existe mais. Agora prevalece o hedonismo, em perdulários passeios pela Via Láctea, enquanto miríades de estrelas apagadas passam fome com dificuldade para sobreviver no dia a dia. O abismo da desigualdade é intransponível a essa altura, com o perdão do trocadilho. Com o que despendeu na viagem o bilionário Jeff Bezos, proprietário da Amazon, – que aumentou em US$ 79,4 bilhões a fortuna no curso da pandemia –, seria possível pagar vacinas contra o Coronavírus para os esquecidos da Terra. As portas para alguém se fazer por conta própria, pelo empreendedorismo, fecharam-se. A menos que por espírito desbravador se entenda vender pães caseiros e rapaduras nos semáforos.
Winners and Losers
O sociólogo Michael Young(1) (A Ascensão da Meritocracia, 1958) inventou o termo, imaginando como seria formidável superar as barreiras de classe para que todos(as) tivessem a chance de ascender pelo mérito. Seria algo a festejar. Mas rapidamente percebeu que essa lógica acaba por nutrir a arrogância dos winners, por justificar privilégios e regalias, e a humilhação dos losers, por ignorar a dor dos que tropeçam nos degraus da escada. Com a perda de empregos e salários veio o declínio da autoestima, que envenena os corações, e a raiva, que enche de ódio os ingênuos capturados pelos discursos antissistêmicos de lideranças da extrema direita, mesmo que estas sejam bilionárias (caso de Trump) ou tenham parasitado sete longos medíocres mandatos eletivos (caso de Bolsonaro).
O erro das elites foi acreditar que controlaria as bestas-feras protofascistas, como fazem com a globalização pró-mercado e a financeirização da economia, tornada um “cassino” na caracterização do famoso economista James Tobin. Cassino que não está acelerando o crescimento econômico, está desacelerando-o. As bases sociais do irracionalismo político amargam uma ira em face das “injustiças do Sistema”, pela falta de compensações por ficar para trás. Daí tamanho apego a armas e religião. Reclamam por justiça, na concepção que implica cargos e honras (reconhecimento), não na que implica distribuição de renda e riqueza na direção do igualitarismo, como apregoam os socialistas respaldados na tendência do pós-guerra, a Oeste, que pressionou os países a aprovarem constituições com perfis menos liberais e mais democráticos, para regulamentar o bem-viver coletivo.
O mérito tem uma função na peneira dos empregos e da prestação de serviços. Porém, não se pode comparar a seleção do melhor odontólogo para um implante dentário com a formatação das classes sociais, a escala do indivíduo com a da sociedade. Um erro que obstaculiza o raciocínio da cidadania, a exemplo das comparações manipuladoras entre o orçamento de uma família (limitado pelos salários) com o de uma nação (que possui instrumentos políticos para potencializar o erário). A intenção, com a prestigitação, é legitimar com um arrazoado pueril as iniquidades crescentes do capitalismo na fase neoliberal, fruto da ganância insaciável dos cifrões. É boicotar a comunhão de fatos e informações que conduzam à reflexão sobre justiça e bem comum, no contexto reinante do capital financeiro. A malta inescrupulosa, que assim age, deseja que a polarização política extrapole as opiniões pessoais e converta os próprios fatos em… narrativas. Não à toa, os casamentos “interpartidários” escassearam, mais do que entre ocidentais e talibãs.
Limites morais do mercado
Historicamente, a noção de mérito está associada à expectativa de salvação com a compra de indulgências pelos pecadores ricos, em busca de lugar no céu. Muitas foram as catedrais europeias edificadas com recursos do comércio de almas, antes da Reforma luterana. A Teologia da Prosperidade manteve a aposta na graça celestial como corolário de atividades mundanas e, do sucesso, fez a prova de predestinação dos eleitos por Deus. Há carreiras funcionais (calvinistas) de Estado que se creem ungidas pela graça com a aprovação em concurso público, o que autorizaria as prebendas indecorosas. A combinação entre esforço pessoal e prêmio providencial é o combustível da fé na meritocracia, hoje. O resultado é a naturalização da segregação em uma sociedade hegemonizada pelos que têm direito a mercantilizar qualquer coisa dos “deploráveis”, até pedaços de seus frágeis corpos.
Sandel, numa feita, perguntou aos alunos, numa aula sobre os limites morais do mercado, o que achavam de um adolescente vender um rim para adquirir um iPhone. Três posições afloraram:
- O jovem tinha liberdade de fazê-lo, já que não se encontrava sob coação;
- É injusto que uns prolonguem a vida, comprando órgãos de pobres e;
- Quem dispõe de meios para conquistar mais saúde, merece viver mais tempo.
A última ecoou o pensamento meritocrático, análogo à pregação evangélica de que saúde e abundância são sinais da presença de Deus. Veja-se, a propósito, a decisão do desgoverno brasileiro que rejeitou unificar leitos particulares e públicos para doentes pandêmicos. Um quarto da população – com convênios – reteve 60% de vagas nas UTIs. Três quartos (velhos, negros, pobres) morreram nas filas. Vingou a opção pela eugenia. Conforme o jurista Pedro Serrano: “Entre nós, a luta de classes tem um caráter eugênico”. A pesquisadora da Unicamp, Adriana Dias, corrobora: “Bolsonaro tem um projeto eugenista (neonazista). O mandato dele tem que ser interrompido. Não tem escolha difícil” (Revista Focus Brasil, 16-22/08/2021).
A desvalorização do trabalho manual agrava a situação porque retira do labor a dignidade de garis que garantem a limpeza das cidades, dos catadores de materiais recicláveis que recendem os antigos profetas do Primeiro Testamento ao sinalizar caminhos alternativos de sociabilidade e dos entregadores de encomendas que sustentam o isolamento social para evitar a disseminação do vírus mensageiro da morte. A condição é que se empreste valor aos trabalhadores. “É o que faz com que o homem ligue a sua identidade humana a uma nação, e encare o seu trabalho como um fator imprescindível ao bem comum”, prega a encíclica do Papa João Paulo II (Laborem Exercens, 1981). O trabalho não tem por finalidade somente auferir rendimento para o consumo em shopping centers. Ele confere estima pública aos protagonistas e, em simultâneo, proporciona a coesão, a integração e a solidariedade sociais. Contudo, valores deste tipo são hoje esmagados na roda desumanizadora das finanças.
Ora inveja, ora desprezo
No Brasil, o sentimento de revolta tem se convertido numa rejeição às normas democráticas e às autoridades que encarnam o poder visível: os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), os parlamentares do Congresso Nacional, os partidos políticos em geral (“meu partido é o Brasil, minha bandeira jamais será vermelha”) e os de esquerda em particular (“comunista bom é comunista morto”, para invocar o conto A Cicatriz, de B. Kucinski), mais os produtores de conhecimento e de ciência. Políticas governamentais com vetor igualitário, marcas do Partido dos Trabalhadores (PT) em prol das camadas empobrecidas, são interpretadas pela pequena-burguesia – para empregar um conceito em desuso – como alargamento da distância que a separa dos detentores do poder, aos quais acusa de abandono. Entre o descaso dos “de cima” e a proximidade dos “de baixo”, aquela destila ora inveja, ora desprezo aos que intervêm dentro das regras do jogo institucional. Tivesse consciência, assumiria uma postura revolucionária. Carecendo, assume a postura contrarrevolucionária do alegórico gado que se alimenta com rações de fake news.
O curioso é que a ideologia do merecimento, celebrada pelo reitor de Harvard James Bryant Conant(2) (Educação para uma Sociedade Sem Classes, 1940), visava superar a divisão da sociedade em classes rígidas, sem mobilidade social, e alavancar uma aristocracia de virtude e talentos, independente de nascimento. Conant apoiou-se nos ombros prestigiosos de Thomas Jefferson, ao enfrentar o desafio com exames de admissão universitários que medissem o Quociente de Inteligência (QI) dos estudantes. Naufragou. Os selecionados pertenciam na maioria a berços dourados. Cabe assinalar iniciativas dos governos Lula da Silva (2003-2010), com melhores resultados. Na letra da Constituição de 1988, ao combater as desigualdades sociais e regionais em pinça, por um lado, expandindo as escolas profissionalizantes e interiorizando as universidades públicas; e por outro, criando cotas étnico-raciais para o ingresso no ensino superior federal que, afora a reparação histórica de importantes segmentos populacionais, estimulou uma notável mobilidade social.
A difusão do evocativo “você merece” acompanhou a ortodoxia do Consenso de Washington (1989), durante o processo de consolidação das políticas econômicas avalizadas pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial. Virou então corriqueiro classificar personas com muito dinheiro e saúde de “abençoadas”. E as coitadas que chafurdam na pobreza e na doença, de “amaldiçoadas” pelas escolhas que as impediram de assimilar determinadas habilidades e credenciais no campo da educação formal. Como se a exclusão social não decorresse de políticas de acumulação, mas de percalços escolares. Por tal fresta entram os epítetos de “inteligentes” e “burros” nas disputas ideológicas. O evangelho in search of prosperity compartilha com o neoliberalismo em voga a responsabilização dos indivíduos pelo que lhes acontece na vida, sem apelar para a contingência da sorte.
Faz escuro, mas eu canto
A meritocracia está internalizada na visão dos acontecimentos, em nosso tempo. A ginasta brasileira Rebeca Andrade, nas Olimpíadas de Tóquio, na entrevista coletiva de praxe ouviu a seguinte pergunta: “O que faltou para alcançar o ouro?”. Foi abordada como perdedora por um jornalista e, apesar da medalha de prata pendurada no peito, perscrutada sobre as supostas falhas demeritórias que a alijaram do topo no pódio. Respondeu, com altivez, que nada havia dado errado e que se sentia feliz. Essa menina, afrodescendente, disse no passarán aos que separam o mundo em “ganhadores” e “perdedores”. E recordou a brutal injustiça de um Sistema em que a igualdade de oportunidades é, moralmente, indispensável para balancear mazelas e misérias que sempre transformam atletas em novos heróis.
A felicidade anda ao largo das benesses de conforto e distinção. Pressupõe o acesso a uma vida digna e à cultura geral. Não se trata de possuir na garagem carros de luxo e proventos nababescos, senão de inserir-se numa ordem social que assegure efetivo reconhecimento por aquilo que formos capazes de alcançar e usufruir, à revelia das circunstâncias fortuitas de berço ou posto na sociedade. Eis, aqui, descortinado o horizonte utópico da humanidade, uma vez suplantada a divisão social do trabalho, e o trabalho deixar de ser um sacrifício à subsistência para configurar-se em suporte vital ao desenvolvimento dos indivíduos. Para romper os grilhões da estética da miserabilidade é preciso libertarmo-nos dos ideais meritocráticos do darwinismo socioeconômico. Na síntese de Karl Marx (Crítica do Programa de Gotha, 1875): “De cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual, segundo suas necessidades”. A isso poderemos chamar Democracia. Sim, com maiúscula.
A ilusão de liberdade oferecida pela meritocracia de que o destino está em nossas mãos desconsidera as obrigações cívicas para com a construção de um projeto democrático coletivo, que não se reduza às searas condominiais protegidas por cercas eletrificadas contra a aproximação das classes tidas por perigosas. “O bem comum apenas pode ser conquistado por intermédio da deliberação com nossos concidadãos sobre os propósitos e os fins de nossa comunidade política, a democracia não pode ser indiferente ao caráter da vida em comum. Ela não exige igualdade perfeita. No entanto, exige que os espaços públicos sejam coabitados por distintos níveis sociais e estilos de existência. Porque é assim que aprendemos a negociar e a acatar nossas diferenças. E é assim que passamos a nos importar com o bem comum… para além da tirania do mérito, na direção de uma vida pública menos rancorosa e mais generosa”, arremata Michael J. Sandel. O contrário fortalece o protofascismo da extrema direita. Afinal, quem tem medo de ser feliz?
Notas:
(1) Citado por SANDEL, Michael J. In: “A Tirania do Mérito: O que Aconteceu com o Bem Comum?” Ed. Civilização Brasileira, RJ, 2020, p. 43. (2) Ibidem, p. 226.