Cabe à cidadania esclarecida e comprometida com a democracia cerrar fileiras na defesa intransigente do Supremo e demais Tribunais Superiores 

As últimas semanas registraram a emergência de alguns episódios – como, por exemplo, a gravíssima explosão de violência vivida na Bahia – a desafiar a reflexão não apenas dos estudiosos, mas também da cidadania em geral. E malgrado a inegável importância dos mesmos, não se pode deixar de abordar aqui, neste espaço dedicado aos temas políticos e jurídicos, os novos e surpreendentes ataques desferidos contra o Supremo Tribunal Federal. 

 Isto porque, agora, não se trata apenas de críticas – procedimento comum e, até mesmo saudável no exercício institucional da vida política. Mais que isso, tem-se desta feita verdadeiras investidas, conduzidas não só por parlamentares, da oposição e até mesmo da coalizão governamental, como, sobretudo, de parte de ninguém menos que o próprio presidente do Senado Federal e, por extensão, do Congresso Nacional.  

 Elas trazem consigo ameaças concretas e explícitas à nossa jovem e frágil democracia, de certa forma tão perigosas quanto aquelas proferidas pelo boçal personagem que presidiu a nação até o ano passado – malgrado a roupagem legislativa que as busca revestir de legitimidade. Sua virulência e ineditismo recomentam, assim, análise e compreensão, visando a contribuir de alguma forma, modesta que seja, para a devida reação dos setores comprometidos com a saúde das instituições democráticas. 

O primeiro, e mais grave destes movimentos, consiste na represália – por todos os títulos indevida – tomada por aquela autoridade contra decisão proferida pelo Supremo, em recurso extraordinário no qual se discutia questão relacionada ao chamado “marco temporal”. O recurso foi interposto contra acórdão do TRF-4 que não reconhecera o direito à terra reivindicada por indígenas, em Santa Catarina, sob a alegação de que estes não teriam sua posse quando da promulgação da Constituição de 1988 – data assim tornada como exigência temporal para o reconhecimento deste direito. A Suprema Corte, pela ampla maioria de nove votos a dois, decidiu acolher a irresignação recursal, uma vez que a Lei Maior, ao tratar dos direitos dos povos originais às suas terras imemoriais, não faz qualquer menção à referida data como condição para seu reconhecimento. E como o recurso recebeu a chamada “repercussão geral”, a nova decisão pacificou o entendimento sobre o tema, a ser seguido por todos os juízes e tribunais.  

Convém recordar que o julgamento desta causa, iniciado ainda em agosto de 2021, foi desdobrado em diferentes sessões, dado que alguns ministros pediram vista do processo para melhor conhecimento da questão controvertida – além de ter sido precedido de audiências preliminares para coleta de informações a respeito do assunto.  

Assim, diante da tendência que se foi esboçando na Corte, no sentido da rejeição da tese sustentada para restringir o direito constitucionalmente garantido aos indígenas às suas terras – uma vez devidamente demarcadas, com base em prévios estudos técnicos – a Câmara dos Deputados, instigada por sua forte bancada ruralista, tratou de aprovar às pressas um projeto de lei consagrando, explicitamente, o implemento daquela condição temporal como exigência ao seu reconhecimento.  

 E, tão logo o referido diploma aportou no Senado Federal, seu presidente anunciou a rápida tramitação da matéria, bem como sua intenção em aprová-la integralmente. Além disso, ao fazê-lo, teceu estrepitosamente uma série de agressivas considerações acerca da necessidade de dar, mediante a edição da nova lei, uma resposta ao que chamou de “invasão de competência do Supremo” sobre os demais Poderes – o que foi até mesmo um tanto surpreendente, devido ao low profile  por ele até então revelado. De qualquer sorte, independentemente das motivações para a mudança de estilo do referido personagem, relacionadas à aproximação da eleição para a presidência da Câmara Alta, interessa aqui sobremaneira destacar a absoluta improcedência jurídica do resultado desta manobra parlamentar, além de evidenciar seus reais propósitos políticos. 

 Quanto à primeira, e definitiva impropriedade da nova lei, não há maior dificuldade em demonstrá-la, saltando aos olhos do observador atento, mesmo leigo em Direito: diante da afirmação categórica acerca de sua inconstitucionalidade, em recente decisão quase unânime do Plenário da Suprema Corte, inexiste qualquer possibilidade legal de instituir a exigência do famigerado marco temporal, como requisito para o exercício de um direito garantido pela Carta Constitucional. Destarte, diante desta evidência solar, espera-se que o presidente da República socorra-se da prerrogativa de vetar a inusitada legislação, editada claramente para afrontar o STF – mesmo que se saiba que haja número de parlamentares suficientes para derrubar o veto posteriormente.  

 E mesmo que o Chefe do Executivo sucumba à lamentável iniciativa congressual, por razões de realpolitik – eufemismo para a rendição política – sua eventual sanção ou promulgação não impedirá o destino certo das leis natimortas, pelo insanável pecado original, em face do inevitável questionamento de sua manifesta inconstitucionalidade, por qualquer dos atores habilitados a fazê-lo, e arrolados  no artigo 103, da Lei Maior. 

Os articuladores de tão desastrada medida bem o sabem; e em face disso, há inclusive quem se disponha a ameaçar – pasme-se! – com proposta de emenda constitucional (PEC, no jargão parlamentar) introduzindo a possibilidade de “suspensão congressual” de decisões do Supremo… Cabe advertir aos que eventualmente conceberam, ou defendam tamanho despropósito, que há apenas um precedente deste odioso instrumento na história constitucional brasileira, em vias de completar duzentos anos: sua vigência na Carta de 1937, então outorgada para impor a ditadura do Estado Novo – e não por acaso apelidada de “Polaca”, dada sua inspiração no documento fascista pouco antes adotado na Polônia. 

Como se isto não bastasse, veio se somar àqueles mais um disparate, que seria até risível se não fosse mais uma perigosa ofensa à razão e ao bom-senso – qual seja, a sugestão de que o Parlamento, por meio de outra PEC, editasse o Regimento Interno do STF…! Pareceria mesmo desnecessário, mas frente à série de desatinos irracionais que acometeram nosso desditoso país nos últimos tempos, deve-se lembrar aqui que o Congresso pode muito, mas não pode tudo. Exemplo disso são as restrições constitucionais ao seu poder de emendar a Constituição, consubstanciadas no artigo 60, § 4º, e seus incisos – as chamadas “cláusulas pétreas”, isto é, as matérias que não podem ser objeto de emenda. 

Entre tais temas, avulta o princípio da “separação dos poderes” (inciso III) – em virtude do qual, evidentemente, só ao Supremo cabe editar e alterar seu Regimento Interno. E, da mesma forma, são também insuscetíveis de emendar “os direitos e garantias individuais” (inciso IV) – em razão do que não se poderá suprimir, sequer por emenda constitucional, os direitos dos indígenas ao acesso às suas terras imemoriais, na forma do disposto na Constituição Federal. Trata-se, é bom sempre reafirmar, de direitos humanos fundamentais, assegurados constitucionalmente. 

Claro que não podiam faltar nesta ofensiva consertada contra a cúpula do Judiciário, as surradas alegações quanto à suposta extrapolação dos limites jurisdicionais, no julgamento de demandas envolvendo temas controversos. É o que ocorreu com as ameaças proferidas, por alguns membros raivosos da denominada “bancada da bíblia”, a pretexto do futuro julgamento, pelo Supremo, de processo no qual se discute a constitucionalidade da criminalização do aborto, praticado ou consentido pela gestante. 

O estardalhaço provocado, em momento no qual as Cortes Superiores são atacadas, parece ter tido como efeito, por cautela, não pautar imediatamente o tema – que terá de ser enfrentado, mais cedo ou mais tarde. Deve-se sempre destacar que eventual, e esperada decisão no sentido de descriminalizar aquelas condutas, muito longe de representar qualquer desbordamento legislativo, importará apenas no exercício, pelo Supremo Tribunal Federal, da competência – “a guarda da Constituição” – que lhe foi atribuída precipuamente no seu artigo 102, caput. 

Não basta, contudo, demonstrar mais uma vez a absoluta impropriedade jurídica das providências desencadeadas e/ou ameaçadas no cerco organizado, a partir do Parlamento, contra o vértice do sistema de justiça. É preciso apontar quais os propósitos destas ações, tarefa para qual sempre é útil recorrer à vetusta fórmula latina, tão ao gosto dos juristas: quid profit? Com efeito, a quem aproveita, a quem interessa desestabilizar os órgãos de um Poder desarmado? A resposta não parece difícil, à primeira vista, ao se atentar para uma oposição, numerosa mas frágil, do ponto de vista político – na medida em que sua força, mesmo considerável, situa-se no mundo das redes sociais virtuais mobilizadas diuturnamente pelos neofascistas.  

 Eles não passam, no entanto, de apoiadores ruidosos, porém secundários, movidos pelo interesse de sair da defensiva, acuados que estão desde a instauração dos vários inquéritos policiais e processos deflagrados contra suas lideranças, em virtudes dos crimes e desmandos praticados antes, durante e depois de sua saída do poder. Na verdade, os reais inspiradores e articuladores dos movimentos conspiratórios aqui considerados, são os que ocupam hoje posições de destaque no comando das Casas do Congresso e dos partidos, alguns até mesmo na base do governo, os quais agem por indisfarçável oportunismo político. 

E, ao tempo em que buscam constranger a Suprema Corte, por eventuais interesses prejudicados, tais atores persistem colocando-se como sócios poderosos e incômodos do governo, usufruindo continua e avidamente de suas vantagens, sem arcar, entretanto, com as responsabilidades respectivas.    

Diante deste quadro preocupante, cabe não apenas aos governistas, mas também e, sobretudo à cidadania esclarecida e comprometida com a democracia – nela compreendidos a esquerda e os setores de centro, e mesmo da direita liberal – cerrar fileiras na defesa intransigente do Supremo e demais Tribunais Superiores, em especial o Eleitoral, uma vez que os mesmos, malgrado os equívocos cometidos no passado recente, continuam sendo a barreira institucional mais eficiente contra os riscos de regressão autoritária. (Publicado no Sul 21, em 14-10-2023)  

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli 
Leia também “O Marco Temporal e a vida“, de Gerson Almeida.