A pandemia de Covid-19 parece estar provocando uma concentração dos tempos e espaços da vida social, no sentido de que o múltiplo e imensamente variado terreno de que a vida das pessoas se ocupa esteja se orientando cada vez mais e já quase exclusivamente a problemas, debates, interrogações, dilemas, etc…., relacionados à Covid-19. Como Franco Berardi (2019) sugere em contexto bem mais amplo (o fim das utopias), a nossa capacidade de pensar o futuro durante esse pouco mais de ano, escasseia. A complexidade da vida se desloca para a complexidade da pandemia. O exercício de viver subordina-se ao seu enfrentamento, aqui e agora. O debate sobre o devir social está contido no devir pandêmico. Trago essa afirmação para um aspecto bem singular, mas não pouco importante, qual seja a identidade das estratégias para 2022 e para o futuro do nosso sistema público de saúde.

Vivemos atualmente uma situação estranha. Torna-se quase consensual a percepção de que o SUS cumpre um papel central naquilo que o Brasil está acertando no combate à pandemia. Daí que ninguém mais fala mal do SUS. Somos todos, profissionais de saúde, sindicalistas, empresários, gestores de planos de saúde, trabalhadores, financistas, etc, admiradores e apoiadores do SUS. O ex-ministro da saúde que extinguiu o ‘Mais Médicos’ atualmente rasga elogios à Estratégia da Saúde da Família. Os empresários que reagiram à reivindicação da fila única de leitos de UTI também querem “fortalecê-lo”. A urgência e a dimensão da tragédia promovem consensos e a palavra de ordem fortalecer o SUS, invade corações e mentes, alguns dos quais passaram a vida torpedeando e enfraquecendo o SUS.

Reivindicar o fortalecimento do SUS durante a pandemia é uma tarefa relativamente fácil, posto que aparentemente, não há mais adversários. A grosseria primitiva do presidente da república e de seus auxiliares tende a unir contrários de toda a vida, não apenas no plano da política em geral, mas também na visão daquilo que a ideia original da reforma sanitária brasileira e sua expressão constitucional representam. Mas, em algum momento, espero que próximo, a vida política não continuará nesse modo unidimensional e o debate continuará. Portanto, a discussão sobre o destino do SUS e seu fortalecimento deve se dar na perspectiva de um futuro que não terá a pandemia como um tema central e muito menos único.

Não sabemos ao certo o que acontecerá com a circulação do Sars-CoV-2, se ele desaparecerá ou se continuará a circular, endemicamente ou mediante surtos epidêmicos localizados. Mas, seja como for, em algum momento ao final deste ano ou início do ano que vem, uma discussão sobre o futuro do SUS deixará de ter como tema exclusivo a pandemia de Covid-19 e suas consequências.

Não se trata de recusar hoje o debate com esses contrários, desde sempre e simpatizantes atuais, mas sim travá-lo nessa perspectiva de futuro, e não apenas na perspectiva da emergência que tende a encontrar soluções consensuais e, eventualmente, efêmeras quando não enganadoras.

É certo que o enfraquecimento do SUS não é recente. A rigor, o desbastamento do sentido democrático e civilizatório que inspirou os seus conceitos fundacionais começou a operar já entre o momento da eleição de Tancredo Neves e a promulgação da Constituição Cidadã em 1988. Na lei que o criou, em 1990, já havia elementos de desfiguração, que foram avançando lentamente, com eventuais períodos de “despiora”, inclusive durante os governos do PT.

Em seu documentário “O Espírito de ’45”, o cineasta escocês Ken Loach mostrou a força das ideias e das lutas que sustentaram e fizeram evoluir o sistema de saúde britânico – que nos inspirou – até o início da década de 1980, quando o neoliberalismo de Margareth Thatcher começou a feri-lo, muito embora não tenha tido sucesso em destruí-lo. Não nos foi permitido viver algo parecido com esse “período de graça” conquistado pelo NHS entre 1948 e 1983. O nosso “Espírito de 1985”, foi praticamente natimorto.

Mas o desgaste não foi linear e sofreu grande aprofundamento no plano propositivo por ocasião da publicação do manifesto que presidiu o golpe parlamentar contra a presidenta Dilma Rousseff em 2016. Intitulado “Ponte para o Futuro”, ele sintetizou uma orientação econômica neoliberal para o Brasil sob o comando de Michel Temer, seus acólitos Benito Gama, Romero Jucá e Moreira Franco e de seu ministro da fazenda, Henrique Meirelles.

Atualmente, meio esquecido, esse documento foi, não apenas o documento que rompeu com as políticas desenvolvimentistas e redistributivistas dos governos Lula e Dilma como, implicitamente, tornou-se a orientação da política econômica nos últimos cinco anos, inclusos os dois de Paulo Guedes no governo Bolsonaro. Sob Guedes, aliás, as ideias nele contidas puderam ser adotadas de modo muito mais assertivo, impulsionadas por um presidente recém-eleito, então com grande popularidade além de apoiado pela plutocracia e pela grande imprensa brasileiras.

Em síntese, essa suposta ponte para o futuro propunha um gigantesco arrocho fiscal com restrição do custeio de políticas sociais e de investimentos públicos, estímulo às privatizações, desindexação e eliminação de vinculações, retirada de direitos trabalhistas e reformas de corte liberal no âmbito previdenciário, administrativo e tributário. Vários passos nessa direção foram dados durante os governos de Temer e Bolsonaro. Outros ainda não foram logrados, muito em função da pandemia e, subsidiariamente, pela resistência dos partidos de oposição e movimentos sociais. Suas propostas continuam na ordem do dia, muito embora alguns segmentos políticos que o elaboraram tenham rompido com Bolsonaro. Mas é importante pontuar que esse rompimento não foi provocado pela renúncia ao projeto, mas pela recusa, em graus variados, da outra dimensão essencial do governo federal: a Guerra Cultural, os arreganhos protofascistas, a disseminação do ódio e os instintos golpistas.

Neste momento em que escrevo, Bolsonaro enfrenta um intenso desgaste político no Congresso (principalmente, mas não apenas, pela inauguração da CPI da pandemia), junto ao Supremo Tribunal Federal, na grande imprensa e mesmo no ambiente de seus apoiamentos civis. Deve ainda ser mencionado o desgaste produzido na relação com os altos escalões militares decorrente de sua desastrada atuação no episódio da demissão do ministro da defesa e dos comandantes das três forças. Contribui também para o desgaste a objetiva e cada vez mais evidente deterioração dos indicadores sociais com o aumento exponencial do desemprego, da miséria e da fome. Difícil avaliar no que esse desgaste resultará, mas é certo que ele ocorre em paralelo ao fortalecimento de movimentos mais amplos de oposição ao governo, grandemente potencializados pela reentrada na cena política do presidente Lula.

O embate eleitoral ainda está distante e todas as energias daqueles que se opõem a Bolsonaro devem estar orientadas para o enfrentamento da pandemia, cujos indicadores de casos e óbitos atualmente tendem a se estabilizar em um patamar muito elevado. Daí que essa ampliação do movimento oposicionista, antes de qualquer preocupação com as futuras eleições, deve reiterar na pauta de ampliação da velocidade da campanha de vacinação, na expansão do valor do auxílio emergencial, sua extensão temporal e cobertura populacional, e no aprofundamento das estratégias de isolamento social.

Na mais desejável das hipóteses, essa movimentação da oposição ao governo tende a desaguar na constituição de uma frente na qual os segmentos políticos no campo da esquerda possam estar unidos a atores situados no centro do espectro político. Importante mencionar ainda que essa hipótese desejável vem se tornando mais factível e equilibrada na medida em que a presença plena de Lula no cenário faz com que aumente o peso do componente daquele primeiro campo na Frente e contribui para estabelecer uma polaridade entre ela e Bolsonaro com vistas às futuras eleições.

A possibilidade e o contorno político de uma frente dependem das forças políticas que dela participem e do conjunto de propostas capazes de construir um programa comum. E, se da frente participam segmentos do centro do espectro político, alguns dos quais foram constituintes do movimento golpista de 2016 e da elaboração da ‘Ponte para o Futuro’, parece provável que haja uma tentativa de convergirmos todos para algo que incorpore pontos oriundos do campo da esquerda e do campo do centro. Será difícil, mas em homenagem à possibilidade de um desfecho feliz, pode ser um esforço louvável.

Minha hipótese é que um eventual programa que resulte dessa convergência eleitoral deverá ser baseado nas questões relacionadas à já mencionada guerra cultural e aos aspectos autoritários e protofascistas do governo Bolsonaro. Além dessas, deverá propor medidas emergenciais relacionadas à reversão do processo agudo de empobrecimento da população, aspectos relacionados à atual política ambiental predatória e à recuperação de instituições fragilizadas ou destruídas pelo seu governo. Penso que a possibilidade de haver algum consenso sobre os elementos centrais do ideário ultraliberal da Ponte para o Futuro são muito pequenas.

Volto então ao início deste texto, em que tratei do fortalecimento do SUS, de seus amigos e (atualmente) quase inexistentes inimigos. Diferentemente do projeto da frente eleitoral, o debate sobre o futuro do SUS deverá ter outro contorno. Nele, a guerra cultural, o autoritarismo e o protofascismo não deverão estar no centro da cena. No meu ponto de vista, o que deve governá-lo é o combate à pauta da Ponte para o Futuro: a privatização, as relações público-privadas, o fiscalismo, as desindexações, a retirada de direitos sanitários e previdenciários etc… E, neste terreno, vejo com muita dificuldade convergências com vários dos atores do centro do espectro político que se assumem atualmente como aliados do SUS.

Se não me engano, há hoje em construção uma nova estratégia da parte dos “amigos da hora” em relação ao SUS. Mais do que uma atitude de combate aberto à política pública que ele representa, ela propõe uma convergência público-privada, cuja pretensão expressa é a de melhorar o sistema público nele injetando a auto identificada eficiência do setor privado. Uma perspectiva que possa superar o conceito de saúde suplementar para um novo desenho, de um só sistema englobando o SUS e o setor privado. Talvez não se trate de um projeto racionalmente construído e, mais provavelmente, seja um caminho do tipo learning by doing, provocado pela emergência da pandemia, cuja dramaticidade vem propiciando uma aproximação de todos os atores envolvidos com saúde humana.

Essa possível nova estratégia sustenta-se em um duplo movimento que vem ocorrendo na prestação de serviços e no financiamento à saúde no Brasil. O primeiro deles é a internacionalização, propiciada pela Lei 13.097/2015 que permitiu a entrada de capitais estrangeiros voltados à assistência à saúde no país. O segundo é a verticalização das empresas de prestação de serviços de saúde. Após uma antiga e difícil convivência com as administradoras de planos de saúde e com o objetivo de otimizar recursos e ter ganhos de produtividade, os maiores grupos prestadores de serviço vêm verticalizando seus negócios, eles mesmos tomando conta do financiamento dos serviços que prestam.

A maior parte do negócio dos grandes grupos prestadores de serviço reside nos componentes de alta e média complexidade e aquele duplo movimento vem exigindo dos mesmos, com os objetivos de diminuir gastos e aumentar produtividade, olhar para a atenção básica. Frente à dimensão e à capilaridade do SUS, as iniciativas pulverizadas de serviços médicos via aplicativos e outras similares perdem muita atratividade. Na nova estratégia, esse modelo híbrido de política de saúde que ainda não tem nome – SUS/saúde suplementar – cresceria muito de importância.

Ator relevante nessa nova estratégia de colaboração público-privada vem sendo o economista Armínio Fraga. Ele defende a existência do SUS e mediante várias sugestões pensa em seu futuro. Em 26 de setembro de 2020 em sua coluna na Folha de São Paulo tratou de expor de modo sintético seu projeto para o SUS. Após reivindicar mais recursos para o sistema público, escreveu: “Uma segunda área a explorar seria o aperfeiçoamento da colaboração com a iniciativa privada. Quando bem regulada, e com incentivos bem alinhados via contratos transparentes, pode ser uma aliada importante na busca por maior escala e eficiência”. Em seguida, sugere um aperfeiçoamento na gestão das Organizações Sociais prestadoras de serviços de saúde.

As tecnologias em saúde vêm sendo apontadas como a principal variável explicativa no aumento de custos de saúde na maior parte dos países. Daí que muitos deles tenham criado instâncias para regular a incorporação de tecnologias em seus sistemas públicos.

No Brasil isso foi feito mediante a criação da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias em Saúde (CONITEC – Lei 12.401/2011). A despeito de suas fragilidades institucionais, ela vem cumprindo papel relevante nessa missão. Na mesma coluna, Armínio sugeria: “Cabe reconfigurar a CONITEC, transformando essa comissão interministerial em uma agência independente —nos moldes do NICE no Reino Unido— que determine com clareza o rol de procedimentos cobertos pelo SUS, bem como a incorporação de novas tecnologias”. Cerca de um mês antes, em 19 de agosto, em evento patrocinado na mesma Folha de São Paulo, o secretário de ciência, tecnologia e insumos estratégicos do Ministério da Saúde na gestão Mandetta, já havia explicitado melhor a proposta. “Uma agência única [SUS e saúde suplementar] traria agilidade e eficiência ao processo e aumentaria o poder do Ministério para negociar preços, garantindo maior acesso à população … é possível criar um cronograma de incorporações… negociadas com as sociedades médicas e associações de pacientes”. Não mais se trataria de uma extinção da atividade de avaliação de tecnologias no SUS, mas de uma fusão dessa atividade com a correspondente no setor privado. Tecnologias avaliadas e incorporadas ao mesmo tempo e segundo os mesmos critérios no SUS e no rol de procedimentos e produtos fornecidos pelo setor privado.

Como uma terceira evidência dessa nova estratégia, menciono as iniciativas de acordos na administração de leitos hospitalares em hospitais públicos por grupos privados. Isso ocorreu com a possível transformação de 450 leitos e 50 vagas de UTI do Hospital Federal da Lagoa no Rio de Janeiro em exclusivos leitos-Covid, sob a gestão do grupo D’Or. Em 13 de abril, o CEO do mesmo grupo visitou o ministro da saúde Marcelo Queiroga com vistas a debater uma “reforma do sistema de saúde no Brasil”, o que gerou firme protesto do presidente do Conselho Nacional de Saúde. Acredito que nessas duas notícias esteja a chave da compreensão do meu ponto de vista sobre enfrentarmos o debate sobre o fortalecimento e o futuro do SUS tendo como referência a atual emergência sanitária. À mobilização dos leitos do Hospital da Lagoa administrada pela rede privada no quadro da dramática situação posta pela pandemia, segue-se uma movida política do mesmo grupo no sentido de propor uma reforma do sistema de saúde.

Parece, portanto, muito razoável supor e propor que as formas de aglutinação de forças políticas para a constituição de uma frente para as eleições de 2022 e para um projeto de fortalecimento do SUS que mantenha íntegros os pressupostos básicos da reforma sanitária e a seção correspondente à saúde da Constituição Federal não sejam as mesmas. Um eventual programa construído pela frente para 2022 deverá ter como centros o combate à Guerra Cultural e ao discurso do ódio, medidas para a interrupção do processo de agravamento da fome e da miséria, a reconstrução das instituições semidestruídas pelo governo Bolsonaro e uma nova abordagem da política ambiental no país.(Rocha, 2021) Um programa que vise o fortalecimento do SUS deverá ter como centro propostas que encerrem ou, no mínimo, mitiguem a orientação neoliberal e privatizante colocada no “Ponte para o Futuro”. Esses dois roteiros, que poderão conter sinergias, exigem atores políticos distintos em sua constituição, discussão e implementação futuras. Caso contrário, ou prejudicarão a frente eleitoral ou permitirão concessões inaceitáveis aos adversários do conceito de saúde como direito.

Referências:

  • Berardi, F. (2019). Depois do Futuro. SP, UBU Ed..
  • Cf. Rocha (2021). Guerra Cultural e Retórica do Ódio: Crônicas de um Brasil Pós-Político. Posfácio de Cláudio Ribeiro. 1ª Ed., Goiânia: Editora e Livraria Caminhos.