Hércules teve um dia cheio. Mais do que o normal. Está cansado, mas é forte. Mais forte do que o normal. Começou cedo, como sempre. Falta pouco para acabar o dia. Só o décimo segundo trabalho. Por parecer o mais fácil, deixou para o final. As outras tarefas foram coisas de governo. Poder público, como dizem. Hércules acha que falta um H depois do P de poder para o nome ficar mais verdadeiro. A burocracia infernal assedia sua paciência. Mas esta última tarefa é em empresa. O deus Mercado é eficiente, acredita Hércules. Bem mais eficiente do que o poder público.
Entregar um modem de internet na loja da empresa e cancelar o serviço. Coisa simples. Quando contratou foi rápido. Num telefonema estava tudo resolvido. Assinou um contrato sem papel. Só de boca. De fala gravada, para “sua proteção”. Daí pra frente, pagou e recebeu menos do que pagou, mas tudo bem, é assim mesmo que plano de internet funciona. As empresas têm permissão do poder público para entregar menos do que prometem nos contratos assinados de boca. O deus mercado sempre consegue o que quer do poder público.
– Pois não, senhor? – Disse a atendente de forma mais robotizada que a máquina que há 40 minutos lhe cuspiu uma senha de atendimento.
– Pedi nesta loja, há uma semana, a transferência de um serviço de internet para outro endereço. Este serviço já foi feito. Vim apenas devolver este aparelho de vocês.
– Claro, senhor. Trouxe algum documento? – Hércules sacou seu celular e entregou à atendente com sua identidade digital aberta. Ela olhou. Digitou algo. Olhou novamente. Digitou novamente.
– É a instalação da Rua Acrópole?
– Sim. Estou de mudança para a Avenida Olimpo.
– Senhor, trouxe sua identidade impressa?
– Esta mesma aqui, só que em papel? Eu não ando com ela.
– Como seu serviço na Rua Acrópole ainda está ativo, só posso receber de volta o aparelho e estar fazendo o cancelamento do serviço se o senhor apresentar a identidade impressa. Se estivesse desativado, poderia receber.
– Como posso desativar então?
– Aqui, com a identidade impressa ou pelo telefone 08007236626.
– Posso fazer por telefone, mas não posso fazer aqui, pessoalmente, com uma identidade digital?
– Sim.
Hércules ligou dali mesmo. Após um labirinto de números digitados, foi atendido. Contou o que queria.
– Senhor, eu não posso estar fazendo essa operação por aqui. O senhor precisa ligar para o número 08007236626.
– Mas foi para este número que eu liguei e você atendeu!
– Precisa ligar novamente e depois da gravação, digitar 9. – Desligou.
Ligou novamente, já sem condições de disfarçar a irritação. Digitou 9. Outra atendente. Contou novamente a história, acrescentando a última conversa.
– Senhor, vou estar retornando o senhor para o menu. O senhor precisa digitar 1 depois da gravação. – Olhava com fúria para a primeira atendente, que lhe retribuía com um olhar entre o desprezo e o nojo. Outra atendente atendeu. Contou, mais uma vez, a história. Acrescentou que estava dentro da loja da empresa.
– Como o senhor está na loja da empresa, não posso atendê-lo, senhor. – Desligou.
Hércules desistiu. Era insano demais. Terrível demais. Sucumbiu aos poderes do eficiente deus Mercado que, ainda que devaste a paciência de milhões, mesmo não entregando o que promete, continua reverenciado no altar da competência com privatizações em sua homenagem.
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Ilustração: Mihai Cauli
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