O processo eleitoral dos EUA entra na sua fase de disputa direta a partir da convenção nacional do Partido Democrata nesta semana. Embora seja uma formalidade, já que os delegados que votam na convenção nem terão outra opção além da vice-presidente Kamala Harris, agora concorrendo para a presidência, e do governador de Minnesota Tim Walz, compondo a chapa como candidato à vice-presidência, esta é uma etapa importante. O processo convencional é importante nos EUA, em especial quando não há disputa (quando há disputa, acontece o que uma convenção existe para que aconteça, o debate e a deliberação sobre candidaturas, programas e outros temas) – uma gigantesca exposição de mídia dos candidatos durante o período da convenção, o que é fundamental para a campanha.

Esse processo por parte dos democratas já vem acontecendo desde que o candidato à reeleição, o presidente Joe Biden, retirou a sua candidatura, há cerca de um mês. Biden estava absolutamente imprensado politicamente quando o fez, em virtude do desempenho desastroso em um debate contra o candidato opositor Trump, poucos dias antes. Esse desempenho pareceu fazer inclinar o pêndulo eleitoral, de uma eleição bastante equilibrada nos termômetros das pesquisas, em direção à candidatura de Trump. O tiro na orelha de Trump e suas fotografias, pouco depois, e o processo da convenção do Partido Republicano, com a evidente exposição em mídia durante dias, reforçou um viés de crescimento absoluto da candidatura republicana, contra o qual mesmo o exercício da presidência pelo candidato Biden parecia fazer muito pouco efeito, e o rumo do processo eleitoral parecia definido. Até que em 21 de julho, Biden retirou a sua candidatura. E o rumo da prosa mudou mais uma vez.

A trajetória da nova candidata Kamala foi de surpreendente crescimento desde que foi indicada. Rapidamente, tornou-se o “novo” no processo eleitoral, mesmo sendo uma candidata de situação, de continuidade, mesmo sendo a atual vice-presidente. Aparentemente isso se deu pelo perfil da candidata. Ao contrário do presidente Biden, um senador de muitos mandatos, de mais de meio século de presença na política dos EUA, branco e anglo-saxão, cuja talvez única característica fora do esquadro tradicional dos EUA seja o fato de ser católico e não protestante, a figura de Kamala serviu para energizar o eleitorado negro, migrante, feminino – Kamala é mulher, filha de imigrantes, pai negro jamaicano, mãe indiana. E acirrar uma eleição que, apesar da rivalidade, parecia morna. O que é muito importante lá.

Nas eleições dos EUA não ganha quem tem mais votos. Ganha quem elege o maior número de delegados nos estados, delegados que são razoavelmente proporcionais às populações dos vários estados. Só para pegar um exemplo para ilustrar, nas eleições dos EUA em 2016, Hillary Clinton, do Partido Democrata, teve cerca de 66 milhões de votos, contra cerca de 63 milhões de seu oponente, Donald Trump, que acabou eleito. Isso porque Trump elegeu 304 delegados, e Hillary 227. Nos estados, em geral prevalece o esquema de quem ganha leva todos os delegados. Assim, ganhando vários estados pequenos, mesmo que apertado, um candidato pode ganhar as eleições perdendo no número de votos totais.

Em geral, os democratas ganham no litoral do Pacífico (que tem inclusive o estado mais populoso, a Califórnia) e no Nordeste dos EUA (onde está, por exemplo, Nova Iorque). Os republicanos ganham em geral nos estados do meio dos EUA (aí incluído, por exemplo, o também populoso Texas). Essa é uma realidade que se repete em cerca de quarenta estados daquele país. E existem uns poucos estados em que se dá de fato alguma disputa, conhecidos como “estados pêndulo”, que podem ir para um lado ou para outro. Nesta eleição, se estima pelas pesquisas que cerca de sete estados possam decidir as eleições, são os estados em que deve haver disputa (Pensilvânia, Michigan, Wisconsin, Nevada, Arizona, Carolina do Norte e Geórgia). Esses estados concentram cerca de 95 delegados, e são fundamentais para a vitória.

Além disso, é fundamental, no jogo de equilíbrio atual dos EUA, que o candidato tenha uma base forte de suporte no Congresso, Câmara e Senado. Há algum tempo que a política nos EUA se move de forma polarizada e sem maioria clara nas casas legislativas. Essa foi a realidade por todo esse novo século, por exemplo. Assim, para ter alguma tranquilidade, é fundamental que o presidente eleito tenha um Congresso ao menos simpático às suas propostas.

Kamala foi capaz, em um primeiro momento, de mobilizar frações importantes do eleitorado, e reverter um quadro que parecia definido. Claro que há ainda um longo caminho até o começo de novembro, quando ocorrem as eleições. Mas o que parecia definido até um mês atrás mudou sensivelmente. Hoje é possível visualizar uma vitória democrata nos EUA, o que era quase impossível antes. Muda muita coisa? Vamos ter que ver. Mas só a defesa da democracia e a derrota de um discurso de extrema direita podem fazer valer a vitória democrata. Provavelmente, o mundo não fica melhor com Kamala, mas seguramente fica pior com Trump. Vale conferir nos próximos meses.

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Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone
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