Manifestação de estudantes no último dia 21/09 em Porto Alegre contra a nomeação de Bulhões para reitor.

A democracia somente é democracia quando é viva e atuante a expressão do pensamento e da ação de todas as correntes de opinião integrantes de uma dada comunidade, região ou povo, sendo pressuposta a observância da vontade da maioria e o respeito aos direitos da minoria. O que certamente não é democrático é uma minoria pretender governar e decidir pela maioria.

Há 32 anos vivenciei a convulsão por que passou a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, quando exercia a função de coordenador do Diretório Central dos Estudantes e o então presidente José Sarney desconsiderou o resultado da eleição do professor Alceu Ravanello Ferrari, estimado e querido diretor da Faculdade de Educação da UFRGS, no processo de consulta dirigido e acolhido pelo Conselho Universitário.

Hoje a história mais uma vez parece se repetir, mas agora como tragédia. Eis que a farsa de então não durou muito e o indicado acabou renunciando ao cargo para assumir uma função administrativa em Brasília, depois de ter sido repudiado pela comunidade universitária diante da marca indelével de ilegitimidade, pois havia, tal como o de agora, assumido o compromisso de não aceitar a nomeação caso não fosse o primeiro colocado na votação.

O argumento para as articulações golpistas, buscado nas notas de rodapé de um manual de ética, era de que, naqueles tempos de redemocratização do Brasil, o escolhido não era tão ruim quanto outros que integravam a lista sêxtupla. Isso, lamentavelmente, ainda é invocado por tantos que se apropriam do poder e fazem alianças inconfessáveis com as forças do retrocesso e da repressão para atacar a democracia ou defender interesses e ambições pessoais, sem perceberem ou não quererem perceber que acabam pavimentando o caminho do fascismo. Mas naquela ocasião não houve perdão para o abuso!

Num final da tarde, alguns dias depois do malfadado anúncio de que a eleição para reitor não fora respeitada, recebi, como representante dos estudantes no Conselho Universitário, uma convocação para uma reunião extraordinária e sem pauta do órgão colegiado máximo da instituição para a manhã do dia seguinte, quando as reuniões ordinariamente se davam pela tarde. Sabendo que o Regimento Universitário e a lei determinavam que a posse do indicado deveria dar-se perante o Conselho, desconfiei.

Rapidamente convocamos uma reunião dos mais de 30 centros acadêmicos de toda a UFRGS e em algumas horas organizamos a manifestação, que começaria às 7 horas da manhã do dia seguinte, em frente ao prédio da Reitoria. Duvidávamos da nossa capacidade de reunir mais do que uma centena de estudantes logo cedo. Mas a nossa surpresa, numa época em que nem mesmo existia telefone celular, foi que várias centenas de estudantes estavam desde cedo em frente ao prédio, ocupando as escadarias e o salão diante da sala de reuniões do Colegiado.

Eu e os demais colegas que tínhamos assento no órgão entramos na sala de reuniões pontualmente às 8 horas da manhã. Logo após anunciada a abertura da sessão, foi informado que seria dada a posse para o interventor, epíteto que passou a ser usado para identificar a figura de um ser humano e pesquisador que respeito e admiro como tal, mas que cometeu esse desatino. Imediatamente pedimos a palavra em uma questão de ordem e anunciamos que não iríamos participar daquela encenação. E nos retiramos, para noticiar aos mais de dois mil estudantes que já estavam do lado de fora que a suspeita da vergonha estava confirmada.

A nossa intenção não era outra senão retomar, na condição de dirigentes do DCE, a direção do ato que iria se iniciar. Mas um sentimento de incontida indignação logo tomou conta da multidão, que passou a anunciar a urgência da ocupação da sala para impedir a realização da reunião e exigir a renúncia do indicado, o que automaticamente ocorreu. Lembro que as rádios em geral e em especial de rock e música popular passaram a noticiar com simpatia o que se passava na Reitoria, conclamando o apoio aos estudantes em defesa da democracia.

A única forma de podermos exercer a direção da multidão que passou a lotar a sala do conselho, com os professores que o compunham livremente circulando e dialogando conosco em busca de um acordo, foi subirmos na mesa da direção dos trabalhos para pedirmos calma para que pudéssemos conversar com os representantes do interventor. Muitas palavras de ordem e vários discursos inflamados se sucederam.

Por volta das 14 horas, o interventor, tendo assegurado pelo comando do ato seu livre acesso ao arcaico sistema de telefonia, autorizou e pediu expressamente, conforme ficamos sabendo depois, ao então governador [Pedro Simon] que determinasse a entrada da Brigada Militar no campus central da UFRGS para desfazer a barricada de estudantes na entrada da sala de reuniões do Conselho Universitário e dar fim ao nosso ato. No dia seguinte estava na capa de um dos principais jornais da capital um policial militar literalmente dando um botinaço e uma “voadora” na porta do Conselho Universitário. Isso chocou profundamente a todos pela ainda recente e triste memória – que em 1988 apenas vinha de uma breve abstinência – das forças policiais agredindo estudantes dentro da Universidade durante a ditadura.

Liberados os integrantes do Conselho Universitário e com os ânimos ainda muito exaltados, naquela altura quase três mil estudantes caminharam em passeata pela Av. Salgado Filho até a Esquina Democrática. E lá, em coro e com muitos discursos, teve seguimento o ato em defesa da democracia universitária, o que se repetiu ainda por muitos meses e provavelmente despertou um repensar em tantos que então tentaram brincar com a democracia. Desde então a democracia foi respeitada na UFRGS e nas universidades brasileiras!

E aqui é necessário lembrar que mesmo a atual previsão de uma lista de três nomes não prescinde do acordo e dos consensos indispensáveis para a convivência democrática e a construção da legitimidade da autoridade universitária. A Universidade não se confunde com os demais espaços de poder institucional e o novo interventor, tal como o de 1988, assumiu espontaneamente o compromisso de não aceitar a indicação caso não fosse legitimado pela comunidade universitária.

A proteção da confiança dos administrados, no Brasil e em diversos países do mundo, é inerente ao serviço público, por força do princípio do Estado Democrático de Direito (artigo 1º da Constituição do Brasil). A resistência e a desobediência civil são igualmente inerentes ao Estado Constitucional. Não por outra razão, a Alemanha, após a tragédia do nazismo, reconhece tal direito no artigo 20 de seu texto constitucional, o que no Brasil está inserido no princípio republicano. O direito de resistência, tal como disse um dos maiores juristas da Itália, que foi deputado constituinte, juiz e presidente da Corte Constitucional daquele país, Costantino Mortati, não se confunde “com um direito à revolução, mas sobretudo deve-se considerá-lo aplicação da exigência da prevalência dos fins sobre os meios, quando estes se revelam inidôneos” (Principi fondamentali: art. 1º. Bologna-Roma : Zanichelli-Foro Italiano, 1975, p. 32).

Na República, o espaço público, a res publica, a todos pertence e jamais pode servir para subjugar a coletividade, pois a finalidade pública invalida meios e expedientes ardilosos. A democracia e a palavra dada, nos processos democráticos, constituem laços de confiança que juridicamente não podem ser rompidos em nome de projetos de poder que passam longe e violam a autonomia universitária.

Na experiência da UFRGS de 1988, a desesperada tentativa de buscar uma “verdade” oficial levou os golpistas ao extremo de acionarem a Polícia Federal para instaurar um inquérito, no qual toda a direção do DCE prestou longos depoimentos. Mas ainda tenho bem presente as palavras do Procurador da República que, no sumário pedido de arquivamento daquela malfadada inquisição, acolhido de pronto pelo Poder Judiciário, lembrou o compromisso quebrado pelo aspirante ao “poder” em um espaço de cultura, saber e pesquisa científica, pois referiu a justa indignação e a deformação da juventude decorrente da banalização da quebra da palavra: “quem nunca foi jovem e nunca se indignou diante de uma situação como esta?”.

A excludente para os protestos, mesmo exacerbados, fora dada pelos então agressores da democracia, que não entenderam ou não queriam entender os novos tempos de superação da ditadura e, especialmente no espaço acadêmico, o significado da autonomia constitucional universitária, consagrada ainda no século XI, em plena Idade Média, em nome da liberdade de cátedra, o livre ensinar e aprender, hoje consagrados nos artigos 206 e 207 da Constituição do Brasil, o que ainda segue com vigor como fator de ilegitimidade do atual interventor, pois a ciência pressupõe liberdade de agir, pensar e questionar e não hierarquia e disciplina próprias de uma ordem burocrática e negacionista.

Que a farsa, desmascarada pelos ventos democráticos de 1988, não se repita como tragédia na conspiração movida pelo sentimento obscuro de quem se vale dos tempos de golpe e negacionismo para galgar um posto de mando, se oferecendo para servir a quem quer fazer a roda da história retroceder. É tempo de repensar, senhores e senhoras do obscurantismo! Na universidade ninguém mexe!

Viva a democracia constitucional e republicana no Estado laico!

Ver artigo relacionado de Paulo de Tarso Riccordi ” O reitor da UFRGS e seu padrinho avacalhado”