Maria deu de cara com o retrato de João. Ele estava ali, onde sempre esteve a cumprir seu papel de adorno de móvel. Ficou perdida em devaneios desconexos contemplando aquele registro de um passado feliz. Não tinha certeza do porquê, naquele exato momento de tédio e solidão, aquele retrato lhe atraia a atenção. Até que, de um estalo, veio à tona de sua consciência o que suas ideias tortas pareciam evitar: “eu não amo mais João”.
João ama seu time de futebol. Ama de paixão. O mesmo time que seu pai amava. O amor de João pelo time é extensão do amor por seu pai. De pouco estudo, desempregado que se apresenta como empreendedor mais por vaidade que por ambição, sustentado pela esposa em um casamento fracassado, é na vitória de seu time que João se permite colocar meio corpo para fora da janela e gritar: “sou campeão! Campeão, porraaaa!”. Seu pai deixou essa vida cedo demais e seu time já não ganha tanto assim.
No fracasso do time e falta de amor de pai, João buscou outra fonte de amor. Descobriu a política na internet. Foi de alienado a engajado de WhatsApp em poucos meses. O celular o levou às ruas em motociatas, acampamentos de protesto, manifestações em grandes avenidas. Ofereceu-se como voluntário na campanha do deputado Fleury, que pelo jeitão meio desajeitado lhe lembrava seu pai.
O deputado tinha fala fácil. Dava imagem e contexto a todas as frustrações de João. Comunistas, doutrinadores culturais, gays, feministas, cultura woke (coisa que João nem sabe o que é), tudo isso seria responsável pelos fracassos da vida de João. Os empreendimentos que nem tentou realizar seriam um fracasso porque o governo comunista suga os empresários, seu casamento é um fracasso porque Maria tem amigas feministas, seu time não ganha porque eles não querem o povo feliz. Todos os seus desamores o levaram ao amor pelo discurso do deputado.
Este seu novo amor nem é bem amor. Só parece amor, mas é ódio. Amor de ódio. Amor pelo ódio. Um tipo de desamor tão intenso que parece amor. Um desamor por si mesmo que de tão grande nem cabe em si mesmo. Por isso, precisa ser colocado nos outros. Quanto mais desama os outros, mais parece amar a si mesmo que, heroicamente, luta nas ruas e nas redes para salvar o país.
Deputado Fleury acredita em Deus. “É o que está escrito em cada nota de dólar”, diz às gargalhadas enquanto negocia o naco da emenda parlamentar secreta que vai parar no seu bolso. Ganha eleições com dinheiro e votos cativados com histórias inventadas, distorções e performances às vezes patéticas, às vezes grotescas, mas invariavelmente chamativas. Passa por corajoso na coragem de ser ridículo em suas atitudes e ideias. Fleury, ao contrário de João, ama muito a si mesmo. E só a si mesmo.
Por tanto amar a si mesmo, para todo o resto só sobra desamor. Diz amar a pátria, mas o que tem no coração é um profundo desamor por este lugar de cenário bonito e sociedade esfacelada. Desama essa terra de cada um por si. Quando quer vida normal, daquela que se tem convivendo com gente desconhecida sem a vontade de enganar ou o medo de ser enganado, vai para o estrangeiro. Ama a pátria alheia no seu desamor pela pátria que diz amar.
Maria nem sente mais a falta de João em casa. Quando ele está, é como se não estivesse. Come sem puxar conversa. Quando ela conversa, trata ele de desconversar com murmúrios, monossílabos evasivos ou com o silêncio. Nos encontros de corpos pelos cantos e corredor da casa, Maria se sente só um obstáculo a ser contornado sem encontro de olhares.
Maria não aguenta mais tanto desamor. Suspira de saudades do amor no desamor de seu quotidiano. Queria alguém, queria um país, uma pátria, queria tudo que se canta falando de amor. Mas, por enquanto, só o que Maria tem é o amargo dos desamores, as fotos de amores passados e a esperança de, um dia, voltar a amar e ser amada.
***
Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli
Clique aqui para ler artigos do autor.