Desde o nascimento do país, poucos foram os que se elegeram  como Trump, com tamanha  contundência, conseguindo simultaneamente obter a maioria  na câmara e no senado. É muita autoridade, demasiado poder nas mãos de um único ser, ainda que este estivesse entre os mais equilibrados, sensatos e razoáveis homens que já habitaram o planeta.

I

É que nos esquecemos. Porque se nos lembrássemos e fôssemos capazes de ir acumulando numa pequena caixa os atos selvagens perpetrados pelo Império ao longo dos anos, ano após ano, os abusos e crimes e atos escancaradamente antidemocráticos e/ou ilegais, de acordo com seu próprio ordenamento jurídico, essa caixinha já teria há muito, muito tempo transbordado e o mau cheiro exalado já teria tornado irrespirável o ar nas redondezas do Capitólio, da imponente sede da Suprema Corte e, é claro, do alvo palácio Imperial. E no vazio tumular resultado dessa inospitalidade se instalaria a perplexidade e a vergonha. Isso, é claro, se vivêssemos numa era onde existissem ainda vergonha e perplexidade. Não seria necessário um alongado recuo no tempo, bastaria uma pequena viagem a quatro ou cinco décadas atrás.

II

Imagine uma cena onde blindados de guerra investem contra uma multidão de cidadãos, como aquela imortalizada na icônica fotografia de um tanque avançando na direção de um frágil chinesinho, enquanto ele teimosamente se recusa a abrir passagem na Praça Tiananmen de Pequim, em junho de 1989. Agora, imagine-a acontecendo numa cidade dos Estados Unidos. Soaria espalhafatoso, estapafúrdio, definitivamente impossível. Mas aconteceu. Em abril de 1993, mal iniciado o governo do democrata Bill Clinton, sua procuradora-geral Janet Reno, contrariando a Lei Posse Comitatus (de 1878) que expressamente proibia o uso das forças armadas como força policial interna contra cidadãos americanos, autorizou a participação do exército para dar fim aos membros da seita Adventistas do Sétimo Dia conhecida como Ramo Davidiano. Quem nos lembra disso não é nenhum dos nove (apenas nove!) sobreviventes que estavam no rancho na hora do ataque, nem a Wikipedia, nem o muito mais recente ChatGPT, mas Gore Vidal, numa de suas mais dramáticas narrativas. Os cristãos evangélicos da referida seita “viviam pacificamente em seu rancho em Waco, no Texas, até que uma equipe da SWAT do FBI, fazendo uso ilegal de tanques do Exército, matou oitenta e dois deles, incluindo vinte e sete crianças. Isso foi em 1993” (El Último Imperio – 1992-2001). Quase exatos três anos depois, “em 20 de abril de 1996 (o aniversário de Hitler…), o presidente Clinton assinou a Lei Antiterrorismo e de Execução Efetiva da Pena de Morte (‘com o objetivo de proteger o povo e o Estado’; a ênfase, claro está, recai sobre o segundo substantivo)”, conta o escritor. Entre várias outras questões consideradas pelo menos polêmicas, essa lei limitava a utilização de um dos instrumentos jurídicos básicos do Estado de Direito, o habeas corpus, e outorgava “ao procurador-geral o poder de usar as forças armadas contra a população civil” (id.), como já havia feito a sra. Reno em 1993, antes que a lei houvesse sequer sido cogitada.

III

Dali em diante foi uma descida ladeira abaixo, sem freio nem inibição. Tudo passou a valer, em nome do combate ao terrorismo. Nesse tudo estava incluída a tortura, como devagar fomos nos dando conta – até aí nada de muito relevante, afinal os torturados não eram brancos, mas criaturas ferozes nascidas em distantes e selvagens colônias ou ex-colônias imperiais. Vale lembrar que a Lei Antiterrorismo de 1996 foi, em tese, uma resposta do governo Clinton ao atentado cometido em Oklahoma, quase no coração do território dos EUA, por Timothy McVeigh, um cidadão americano, “herói condecorado da guerra do Golfo e dedicado boy scout”, nas palavras de Gore Vidal. Não tardou muito para que uma enxurrada de novas leis fosse aprovada com a celeridade própria dos regimes de exceção. A mais conhecida delas entrou para a história com o nome de USA Patriot Act. Analisada a toque de caixa, entrou em vigor pouco mais de um mês após o ataque contra as Torres Gêmeas. Como as torres na capital simbólica do Império, o celebrado Estado Democrático de Direito também se via ainda mais engolido pela poeira do seu próprio desmoronamento, lento, mas aparentemente imparável. Às forças policiais se concederam poderes e permissão ilimitada de vigilância sobre todo e qualquer cidadão – monitoramento de comunicações interpessoais (e-mails, ligações telefônicas de toda natureza e qualquer tipo de mensagem), rastreamento de dados financeiros, realização de buscas em residências e escritórios sem aviso prévio e por tempo indeterminado. Isso, para os que eram cidadãos do Império. Para os estrangeiros em geral e os membros das comunidades muçulmanas em particular, Guantánamo. (Ali, neste novembro de 2024, ainda estão encarcerados uma trintena de prisioneiros, nenhum deles formalmente acusado.) Não foram poucos os países que reagiram e criticaram a aprovação do Patriot Act, mesmo entre os que se perfilam como fiéis súditos imperiais, as estelares potências do Velho Mundo antes que quaisquer outros. Foram solenemente ignorados – da mesma forma que, agora mesmo, o regime de Netanyahu ignora a repulsa internacional para seguir assassinando os que são obstáculos reais, imaginários ou potenciais às suas ambições expansionistas. Mas não pararam por aí. Na sequência, vieram o Protect America Act (2007), que permitia o monitoramento de comunicações internacionais “sem a necessidade de autorização judicial”, etc., o National Defense Authorization Act (2012), autorizando a “detenção indefinida de qualquer suspeito de ligação com terrorismo e sem julgamento formal”, etc. A verdade é que, não fosse o Império o todo poderoso manda-chuva, a isso imediatamente batizaríamos (provavelmente às margens do rio Jordão) de Estado Policial. Mas não Estado de Direito, ainda que ali estejam, majestosos e – ao menos na superfície – intocados os Três Poderes que o definem. Além, é claro, da imprensa livre, o chamado Quarto Poder, que na sede do Império, como nos foi ensinado desde a meninice, é a mais livre e independente de todas quantas as que existem ou existiram.

IV

E até aqui chegamos. Na primeira terça-feira de novembro, dia 6, os americanos celebraram suas tradicionais eleições livres e democráticas e nelas se decidiu que o novo comandante da frota Imperial será o megaempresário Donald Trump. Desde o nascimento do país, poucos foram os que se elegeram com tamanha contundência, conseguindo simultaneamente obter a maioria tanto na câmara quanto no senado. É muita autoridade, demasiado poder nas mãos de um único ser, ainda que este estivesse entre os mais equilibrados, sensatos e razoáveis homens que já habitaram o planeta. À diferença do primeiro mandato, no qual se tornou presidente mesmo tendo perdido no voto popular por uma diferença de quase 2,9 milhões de votos, Trump tem agora a seu favor também a maioria na Suprema Corte. Antes ainda de se eleger, já havia obtido ali uma vitória de primeiríssima magnitude para poder governar com as mãos soltas (ver O Day After com Trump), e a ele a consolidada maioria da Corte (seis contra três) não terá dificuldades para entregar as chaves do céu (ou será do paraíso?) – aquele lugar no qual, pela mitologia cristã, os sonhos de todos os bons e justos imediatamente se realizam.

V

Para os que imaginam que o cenário e as perspectivas não são assim tão diabólicos, uma notícia divulgada no sábado, 09/11, pela CNN dos Estados Unidos dizia que autoridades “do Pentágono estão mantendo discussões informais sobre como o Departamento de Defesa responderia se Donald Trump emitisse ordens para enviar tropas da ativa “para atuarem em solo americano”, o que é ilegal. E estariam também preocupadas para o caso de que “seus indicados políticos dentro do Departamento não reagissem”. Segundo a matéria, Trump sugeriu que “estaria aberto a usar as forças na ativa para a aplicação da lei doméstica e a implementação de deportações em massa, encher (to stack) o governo federal com servidores leais e ‘limpar os atores corruptos’ do sistema de segurança nacional dos EUA”. A matéria da CNN lembra que, no decorrer da campanha, em outubro passado, o presidente recém-eleito afirmou “que as forças armadas deveriam ser usadas para lidar com o que ele chamou de ‘inimigo interno’ e ‘lunáticos radicais de esquerda”. Usar as forças armadas para a aplicação da lei doméstica – lembram-se de Waco? Limpar o sistema de segurança nacional de “atores corruptos”? Não terá sido por nada ou apenas para reduzir a burocracia e os gastos públicos que Trump indicou seu parça Elon Musk para o recém-criado Departamento de Eficiência Governamental (Department of Government Efficiency), nem terá sido por nada que o indicado para ocupar o cargo de secretário da Defesa (DoD) tenha sido outro de seus parças, o apresentador de TV Pete Hegseth (Fox News). De acordo com o Político, horas depois que Trump anunciou a nomeação de Hegseth, “o choque entre os funcionários do Pentágono rapidamente se transformou em alarme”. Se esses funcionários, tão acostumados com os horrores praticados pelas forças armadas americanas fora do país, estão alarmados, imagine-se o tamanho da tempestade que pode estar se aproximando.

O grande líder

Se a Oligarquia veio definitivamente para o centro do palco, trouxe grudada a ela e compondo uma imagem baconiana, uma democracia cada vez mais deformada e submetida à figura do líder carismático com imensa capacidade de manipulação e mobilização das massas ou, se se preferir, das grandes audiências, dos milhões de seguidores de plataformas de internet e que tais, o Quinto Poder, como profeticamente anunciou o ex-candidato a prefeito da cidade de São Paulo e coach Pablo Marçal.

Boa notícia

Durante a semana que se encerra, os jornais The Guardian da Inglaterra e La Vanguardia da Espanha anunciaram a decisão com efeito imediato de abandonar a plataforma X (máquina de mentiras a serviço do dono, o Homem Mais Rico do Mundo e agora nomeado para o primeiro escalão do governo de Donald Trump). Justificaram a decisão como rechaço ao aumento “de conteúdo tóxico e desinformação” do X. O mesmo fez duas importantes organizações culturais europeias, o Festival de Cinema de Berlim (Berlinale) e o Festival de Cinema de Veneza. Quem sabe já tenha chegado a hora de se iniciar uma corrente mundial de abandono da X.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone
Leia A vitória de Trump nos EUA, de Adhemar Mineiro.


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