Do Porto de Marselha ao pulmão do Brasil: o discurso épico que nos salva

No discurso da vitória, logo após a proclamação dos resultados eleitorais, Jean-Luc Mélenchon, líder da França Insubmissa e figura central da formação da Nova Frente Popular, disse (e agradeceu!) que pelas veias de um quarto dos franceses corria o sangue dos imigrantes. E disse também, de frente para o mar, em Marselha, que, naquelas águas que trouxeram este sangue, estavam também os túmulos de milhares de crianças, cujos pais vinham das antigas colônias, nos seus barcos precários, em busca de uma vida digna.

O que espera da França o mundo democrático, a esquerda, o centro democrático e a centro-esquerda mundial? Não sabemos, ainda, mas da direita fascista já sabemos, como dizem Piketty e Julia Cagé (“The Guardian”, 3/jul.24), devemos esperar que “por não ter uma plataforma econômica credível, a extrema direita voltará à única coisa que conhecemos – à exacerbação das tensões e à política do ódio”.

Um artigo de Dani Rodrik (10/07/24, “Project Syndicate”) de outra parte, propõe o que devemos esperar de uma força política de esquerda, historicamente ancorada nas classes trabalhadoras, no atual momento de crise de perspectivas da ideia socialista em todo o mundo: que a nossa fala deve se reportar ao novo mundo do trabalho, que está sendo cooptado pelo conservadorismo empresarial – com a ilusão de que todos podem ser empresários de si mesmos – e pelas facilidades aparentes do fascismo como forma de exercer o poder pela violência desmedida.

Diz ainda o autor, falando mais além das importantes questões climáticas e de gênero, sobre as quais a elite cultural tem opiniões diferentes do público em geral: “focar diretamente em empregos bons, seguros e produtivos para trabalhadores sem diploma universitário. O aumento da insegurança econômica, a erosão da classe média e o desaparecimento de bons empregos em regiões em declínio foram o coração do aumento do populismo de direita (…), apenas revertendo esta tendência à esquerda pode apresentar uma alternativa viável”.

As eleições do dia 7 de julho apontaram uma vitória brilhante da Nova Frente Popular e criaram um novo cenário de bloqueio contra o fascismo na Europa. Não é o renascimento da esquerda tradicional da velha Frente Popular de 1936, assim como as facções de direita e extrema direita, unificadas em torno da Madame Le Pen, não são as mesmas do século passado.

Pode-se dizer que estas representam a mesma barbárie que ensejou a ocupação nazista, mas hoje elas se articulam com setores sociais e econômicos que se unificam em torno de outros ideais. A desorganização da sociedade de classes tradicional trouxe à tona da “grande política” novos atores políticos representando outros sujeitos sociais e também suscitou outros polos de disputa. Um deles, nestas eleições, teve uma participação decisiva na vitória da Nova Frente Popular: os imigrantes ancorados na periferia do sistema de poder do capital.

Os fascistas e a extrema direita autoritária querem integrar uma Europa sem imigrantes – branca e financeiramente elitizada – junto a vastos setores marginais das elites “cosmopolitas”, que estão no limite do crime organizado (financeiros, militaristas e armamentistas), que chamaram para si os deserdados do Estado Social em crise e conquistaram os proletários desempregados (ou situados em empregos secundários) e um sub- proletariado branco socialmente bloqueado, bem como as classes médias baixas, ressentidas pela queda da qualidade dos seus empregos.

O que unificou a oposição antifascista, todavia, no segundo turno, além da luta por uma vida melhor – como é natural em quaisquer processos eleitorais – foi a busca de uma coesão de novo tipo, de caráter humanista e democrático. Foi a defesa de uma nação não unificada pela “raça”, mas a busca de um convívio social mais solidário, com base no espírito da velha contratualidade social democrata que, apesar da sua crise, sobrevive na consciência de uma boa parte da população.

Uma França Insubmissa ao fascismo, como se viu pelo resultado da união do centro com o conjunto das esquerdas e horizontalmente unificada pela fraternidade antirracista, culturalmente porosa no seu sentido mais nobre e vibrante – não pelos novos ideais neoliberais da Europa unificada pelo capital – mas pelo velho imaginário da sua Revolução que derrubou a Bastilha.

Chego ao objeto do meu artigo. Penso que o Brasil é o país ideal para a experiência da Nova Frente Popular francesa e que o Rio Grande do Sul e Porto Alegre são pontos axiais desta referência de mimese política, pelas suas virtudes e pelas suas tragédias. Tragédias: o Brasil saiu de um governo ensandecido pelo ódio, patrocinado pela maioria dos meios de comunicação tradicionais, que lutaram para colocar na cadeia o maior líder popular do país, que venceria as eleições presidenciais do defensor da tortura e do fascismo; e o Rio Grande atravessa a maior tragédia social e climática da sua História, cujas causas são universais, mas que foram agravadas pela desatenção destas mesmas elites, que ora dominam a cidade, fixadas apenas nos seus “negócios” públicos e interesses privados.

Pensemos agora nas virtudes: o Brasil reprimiu um golpe de Estado pela força das suas instituições de Estado e através de uma posição de que se tornou hegemônica, em favor da democracia, dentro das nossas Forças Armadas, o que nos dá uma estabilidade invejável, talvez de longo curso, na América Latina; e Porto Alegre é uma cidade de prestígio mundial na questão democrática e ambiental, que as últimas administrações não conseguiram apagar na memória do Planeta, berço do Foro Social Mundial e das grandes lutas ambientais que se desenvolveram no país, nos últimos 50 anos.

Agora é necessário que o Governo Federal tenha coragem de dizer que vai fazer e vai organizar um grande movimento institucional e político para – a partir do Rio Grande em reconstrução – interpor uma unidade política de novo tipo, a partir do estado, para um processo épico de construção de um novo modelo socioambiental de crescimento, desenvolvimento educacional, tecnológico e social para o Brasil. As plataformas principais deste salto estão aí, vão do sul ao norte do país, que têm como marcos referenciais: o Rio Grande reconstruído e construído, o Pantanal do Mato Grosso e a gigantesca Amazônia -pulmão do mundo e coração do Brasil. (Publicado no Sul 21, em 14/07/2024)

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Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
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