A casa dormia, a cidade dormia, Kafka então escrevia. Um dia Max Brod convenceu Kafka a ir num encontro com um editor. Foram, e o primeiro a falar foi Max, que exaltou o amigo escritor; depois foi a vez do editor. Kafka só escutava, e ao final da reunião disse ao dono da editora: “Se pudesse dar-lhe um conselho, diria para que não me editasse”. Tanto ele como Clarice Lispector se sentiam não pertencentes, sofriam e assim se humilhavam.

Jorge Luis Borges disse que Kafka é o número um dos escritores do século XX. Já os adolescentes são seus leitores, e a hashtag com a palavra Kafka tem mais de 40 milhões de visualizações. O entusiasmo dos jovens decorre dos temas como a solidão, o conflito com o pai, a opressão.

A opressão está na primeira frase dos dois livros mais famosos do escritor. A metamorfose: “Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama transformado num inseto”. Já O processo começa assim: “Alguém certamente havia caluniado Josef K., pois uma manhã ele foi detido sem ter feito mal algum”. Situações estranhas num mundo absurdo, que geram desamparos em labirintos sem saída. Kafka descreveu o mundo como “desloucado”, revelando como o fato louco é que o mundo louco seja considerado normal.

O mundo também é kafkiano, pois a gente está mais para se sentir desamparado, e nisso ele antecipou a Freud ao descrever o mal-estar na cultura. Ambos perceberam o crescimento da crueldade do autoritarismo a partir da Primeira Guerra Mundial. Entretanto, há esperança, é preciso imaginar o amanhã, mas falta pouco para se pensar como Kafka ao dizer: “A esperança existe, mas não para nós”.

Mal-estar na cultura, o livro de Freud mais lido, em alemão é ‘Unbehagen in der Kultur’, onde a palavra ‘unbehagen’ é desprotegido, um mal-estar no mundo, o desamparo. A palavra ‘unbehagen’ se associa à palavra ‘unheimlich’ – estranho, sinistro –, título de um ensaio essencial da Psicanálise. Significa o não familiar, o que deveria ter permanecido oculto e que ao vir à luz aterroriza. O desconhecido assustador está tanto na ficção de Kafka como em Freud, que teorizou a partir do inconsciente e das pulsões.

Reiner Stach é o autor da trilogia sobre a vida e a obra de Kafka, biografia saudada como a mais alta realização nesse campo. Na leitura se conhece como o escritor, desde criança, estava familiarizado com pessoas degradadas em animais. Seu pai adorava dizer da cozinheira que era uma “vaca”, o ajudante da loja chamava de “cão doente”, do filho que era um “porcão”. O mais desprezado dos animais é o inseto, daí a praga, a barata, e Kafka cria um inseto para escrever sua A metamorfose.

Os pontos centrais da obra são: pai, judaísmo, doença, assalariado, solidão, processo criativo, batalha em torno da sexualidade e impotência para o casamento. Stach destaca o cômico e o humor na sua obra, mas antes dele foi Walter Benjamin quem havia escrito que o humor é o elemento essencial em Kafka. Tardei em entender essa afirmação, pois é um humor original, um humor ácido, humor do desamparo. Aliás, o desamparo é a essência da existência tanto em Kafka como em Freud.

O adjetivo kafkiano expressa a vida como absurda, angustiante, terrorífica, mas desde a década de 1990 é preciso incluir o humor. Stach escreve que cada vez mais leitores percebem como a maioria dos textos do escritor contêm passagens graciosas. A descoberta do sentido de humor em Kafka explica por que ele e seus amigos riam quando o escritor lia em voz alta seus escritos. O humor aliviou o humilhado escritor que se casou com a escrita, sua terapia.

Kafka foi o herdeiro do humor judaico e dos comentários talmúdicos, medita sobre a lei e seus mistérios, como no livro O processo. Trabalha ainda com parábolas, fábulas, contos, que são como reflexões rabínicas. Teve ainda interesse pela Cabala e o sionismo, sonhou em ir para Israel.

Comecei a ler Kafka na adolescência com Carta ao pai, e a cada tanto o leio ou releio. Aos poucos vou me entendendo com sua forma de pensar, mas sua tristeza sobre a humanidade pode ser contagiante. Quando sinto o peso busco apoio em Chaplin e na Sbórnia para me recuperar.

Kafka foi um estranho, como escreveu: “Vivo na minha família, mais estranho que um estrangeiro”. Talvez uma das coisas que nos toca é esse sentimento de estrangeiro, é o estranho inconsciente que vive na gente. Cem anos após sua morte, fico espantado, pois ele escreve cada vez melhor, como disse um amigo. Indico um livro delicioso de Kafka: Narrativas do espólio. São 30 histórias breves revelando os paradoxos do viver.

Ah, do que mesmo ri Kafka? Do sucesso. (Publicado na ZH, 01/06/2024)

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Ilustração: Mihai Cauli 
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