Como pensa o sujeto neoliberal

Esse texto tem como ponto de partida uma pergunta similar àquela que fora colocada por Fernando Haddad em seu livro O Terceiro Excluído (2022): como pessoas – algumas, até com discernimento – decidiram votar em um extremista de direita que defende golpe militar, tortura, que faz fake news de kit gay e menospreza o conhecimento científico produzido na universidade?  Hoje, mesmo após a eleição de Lula, e no contexto da aproximação de sua posse em 1º de janeiro de 2023, essa pergunta se mantém. Lula foi eleito com um percentual de 50.90% de votos válidos: temos o menor percentual de um presidente eleito desde 1989 – o que não ameniza o peso da pergunta que coloquei: por que pessoas votam naquele extremista de direita?

Essa pergunta nasce do meu profundo mal-estar com os acontecimentos políticos, desde o ano de 2013. Eu observava as manifestações daquela época, que seguiam pelas ruas do Rio de Janeiro, percebia aquele entusiasmo em ir para as ruas – e eu não sentia esse entusiasmo. Hoje, me lembro de alguns flashes de minhas aulas na UFF em que, no auge das manifestações, eu dizia aos estudantes: “vocês pensam que a pessoa que está ao seu lado na manifestação compartilha das mesmas preocupações, do mesmo espectro ideológico que vocês? Talvez essa pessoa esteja defendendo o que você está combatendo, talvez essa pessoa defenda um espectro ideológico que combata você.” Eu confesso que dizia essas coisas sem saber a razão de estar dizendo isso. Eu apenas expressava meu descontentamento e minha profunda impaciência com o crescente individualismo que, na época, corroía as massas, que se travestia de bem comum, que se constituía como a verdade da aparente massa de pessoas que iam às manifestações – a ponto de eu não conseguir mais entender o que estava acontecendo: nada ali parecia se encaixar na perspectiva colocada por Freud a respeito da formação das massas. A mim, restava o descontentamento, a impaciência. E o desdobramento dos acontecimentos políticos só produzia mais descontentamento e aprofundava minha impaciência. Então só me restou, efetivamente, transformar todo esse pathos na matéria a partir da qual redirecionei minha pesquisa da psicopatologia do sujeito para o neoliberalismo, sua racionalidade e a especificidade desta racionalidade: o fato dela estar divorciada do inconsciente.

Eu apresentarei algumas diretrizes do tema de minha pesquisa conduzida no Programa de Pós-Graduação em Psicologia/UFRJ, junto ao Laboratório de Psicopatologia Fundamental em Estudos de Subjetividade e Emergência Humanitária, que tem se dedicado à investigação da racionalidade neoliberal e, mais especificamente, da melancolização como o pathos desta racionalidade. Desde o ano de 2020, com a irrupção da emergência humanitária da Covid-19, a pesquisa interroga os impactos psíquicos da gestão neoliberal, a partir de dois eixos:

  • 1) A relação entre neoliberalismo e emergências humanitárias;
  • 2) Os processos psíquicos exigidos por tal modelo de gestão.

A pergunta que abriu esse texto se refere ao segundo eixo de pesquisa. Quanto ao estatuto da racionalidade ou do sujeito neoliberal, arrisco-me a afirmar que se trata de um sujeito sem inconsciente. Quem estuda psicanálise localiza nessa formulação – o sujeito sem inconsciente – um erro conceitual. Mas só o localizamos porque ainda estamos na psicanálise, só o localizamos porque a psicanálise ainda é nosso quadro conceitual. Porque para o neoliberalismo não é um erro conceitual: o sujeito neoliberal é sem inconsciente, está divorciado da relação com a verdade, é sem contradição; em suma, é destituído da experiência de alienação fundante reconhecida pela psicanálise desde Freud. O sujeito neoliberal não tem determinação, não é marcado pela alienação ao significante de época, pela alienação ao outro social. Após esses nãos que uso para defini-lo, é preciso acrescentar: o sujeito neoliberal está centrado em torno da unidade do eu garantida pela identificação servil ao empreendedorismo. Ele é o que é obedecendo aos princípios de: simplicidade, unidade, autonomia, autodeterminação, autenticidade, consciência de si e concorrência.

No quadro de devastação da I Guerra, Freud denominara essa forma do eu, com suas características, de eu ideal. Dardot e Laval denominaram essa racionalidade neoliberal, de empreendedor de si (2016). Isso foi aparecendo com cada vez maior clareza para minha pesquisa, no marco do impeachment em 2016 e da Operação Lava Jato. E por quê? Porque foram dois processos em que observamos: 1) A demonização do Estado de bem-estar social e da política como instâncias corruptas e excessivamente interventoras sobre a liberdade individual; e 2) A ascensão da moralidade mais tradicional no lugar da política por meio da pauta anti – antiaborto, anticomunista, antifeminista, antirracista, anti reconhecimento de direitos civis – e de uma espécie de trindade em torno da religião (Deus), pátria e família.

Esses dois processos – criminalização do Estado de bem-estar social e o profundo enraizamento moral nesta trindade – refletem a tendência antidemocrática que acompanha a ascensão da racionalidade neoliberal. Eles estão intimamente articulados no sujeito neoliberal, que insiste em se divorciar de sua alienação fundante. Esse sujeito se afirma como independente dos significantes de época – conforme eu já afirmara, ele é o que é e se reforça do desmantelamento do Estado. Esse desmantelamento do Estado no neoliberalismo exige a família patriarcal, com a responsabilização do sujeito pela provisão dos cuidados aos dependentes. É o que pode estar na base da própria reificação do eu, na própria exacerbação do individualismo no neoliberalismo, que apaga a exaustão que essa responsabilização produz ao recair sobre o eu, por meio do título de sujeito empreendedor.

Nesse ponto, eu retomo a pergunta que, em 2013, endereçara aos estudantes que faziam minhas disciplinas na UFF e que iam às manifestações, tomados pelo aparente entusiasmo pelo novo e a recoloco da seguinte forma: as manifestações de 2013 representavam um ato de emancipação? Ou seria o reforço da unidade do eu, do eu ideal – a forma mais fetichista e narcísica do eu?

Para quem estuda psicanálise essa pergunta é muito importante e já traz uma indicação importante. Ela está alicerçada na descoberta freudiana relativa à natureza feroz, agressiva, do narcisismo e antecipada por Jacques Lacan em sua tese IV de Agressividade em Psicanálise (1948) em que ele define a verdadeira estrutura do eu em sua unidade, em sua vertente de ser o que é – o empreendedor de si: identificação narcísica, estagnação formal, rigidez, agressividade.

Essas considerações sobre o empreendedor de si estão em conjunção com o que situo como uma profunda crise dos significantes-mestres no neoliberalismo ou o que, também, qualifico como uma depredação do patrimônio simbólico democrático produzida por esse modo de funcionamento do capitalismo.

Não me refiro ao declínio da função paterna ou a uma crise do pai do patriarcado. Refiro-me a algo que está para além dessas metáforas edipianas tão utilizadas pela leitura conduzida pela psicanálise contemporânea sobre o neoliberalismo; e que essas metáforas, nesse contexto de época, acabam por esconder. Refiro-me a uma crise profunda nos significantes-mestres que ordenam uma época, que organizam o campo de ação em uma época e que permitem a ascensão do empreendedor de si, a nova forma assumida pelo eu ideal – com todos aqueles princípios que apresentei aqui – e de uma tríade da moralidade que o ancora com suas pautas anti.

Considerar essa crise é fundamental para ultrapassar o limite imposto por metáforas edipianas: o neoliberalismo produziu essa crise ao atacar o Estado de bem-estar social com seu conjunto de políticas que produzem o reconhecimento de direitos civis. A crise a que me refiro, neste sentido, é uma crise dos direitos civis e da emancipação assegurada pelos direitos civis. Neste sentido, o que inicialmente foi denominado aqui como racionalidade neoliberal e que redenomino como a nova forma assumida pelo eu ideal não é o produto do adestramento e da coerção dos corpos. É a conformação do eu nessa crise que atinge os direitos civis, que depreda o patrimônio simbólico democrático pela produção do horror quanto ao Estado corrupto. O problema é o que Freud e Lacan identificam nessa conformação do eu ideal servil à lógica neoliberal: ele é estagnado formalmente e seu pathos é profundamente agressivo num retorno maciço sobre o eu. O que Lacan reconhecera como sendo a estagnação formal e a agressividade na estrutura do eu, Freud indicara em Luto e Melancolia (1917) e em O Ego e o Id (1923) por meio da melancolia: uma conformação do eu de maior radicalidade e pela fórmula o eu padece da sombra do objeto que recai sobre ele.

Os princípios da racionalidade neoliberal fundamentada – simplicidade, unidade, autonomia, autodeterminação, autenticidade, consciência de si, concorrência – conforma uma experiência subjetiva de hiper responsabilização, exatamente conforme o que encontramos na definição de melancolia por Freud em Luto e Melancolia (1917).

Durante todo esse tempo – foram nove anos desde o ano de 2013 – eu acabei fazendo um profundo trabalho de sublimação de meu mal-estar diante da época que se desenhava, na direção de transformar esses afetos em uma investigação sobre a relação entre o neoliberalismo, a crise dos significantes-mestres que ele promove no tecido democrático social e na conformação de uma subjetividade organizada majoritariamente na estagnação formal do eu ideal e no pathos da melancolização.

Hoje, apesar de o governo Bolsonaro ter, ainda, 46% de aprovação, 46% não são 100%. E a pergunta do início deste texto ganha os contornos de um princípio de emancipação: ainda há muitos que não votam, que se recusam a votar e a aprovar um governo que defende golpe militar, tortura, que faz fake news de kit gay e que despreza a ciência que produzimos na universidade. Há muitos que, avisadamente, não se deixam seduzir pela falsa unidade das massas e que não têm do que se arrepender.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone
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