Quando alguém pesquisa no Google quantos estupros acontecem por ano no Brasil, encontra um número perturbador: 822 mil casos anuais, o que equivale a quase dois estupros por minuto. Ainda mais alarmante é saber que apenas 8,5% desses crimes chegam ao conhecimento da polícia e apenas 4,2% são registrados pelo sistema de saúde. Essas estatísticas foram apresentadas em um texto para discussão do Ipea, publicado em 2023 sob o título “Elucidando a prevalência de estupro no Brasil a partir de diferentes bases de dados”, do qual tivemos a honra de ser coautores ao lado de Helder Ferreira, Paloma Alves e Marcella Semente.

Esses dados são tão chocantes que sempre nos perguntam como chegamos a essas estimativas. Combinamos duas fontes de dados: a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS/IBGE), que capta relatos diretos da população, e o Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan/MS), que reúne notificações feitas nos serviços de saúde.

A PNS é uma pesquisa domiciliar do IBGE que coleta dados sobre saúde, hábitos de vida e acesso a serviços. Por ser amostral e representativa, permite estimar a prevalência de diversos fenômenos, inclusive violência sexual, entre maiores de 18 anos. Já o Sinan reúne notificações compulsórias de agravos registradas no SUS, entre elas o estupro.

Na edição de 2019 da PNS, 0,4% dos adultos declararam ter sido forçados a manter relações ou praticar atos sexuais contra a vontade nos 12 meses anteriores à entrevista, com variação entre 0,15% e 0,64% dependendo da UF.

Esse percentual corresponde a cerca de 612 mil vítimas em apenas um ano. No mesmo período, o Sinan registrou 9.596 notificações de estupro envolvendo pessoas adultas, o que equivale a apenas 1,6% do total estimado pela PNS/IBGE, com variação entre 0,5% e 4,8% dependendo da UF.

Um desafio metodológico importante foi o fato de a PNS não contemplar menores de 18 anos. Para lidar com isso, construímos duas hipóteses. Na primeira, assumimos que a taxa de notificação entre adultos e menores seria semelhante em cada unidade da federação. Na segunda, adotamos uma abordagem conservadora, aplicando a mesma taxa de prevalência observada entre adultos à população de crianças e adolescentes. A partir dessas hipóteses, chegamos a duas projeções: uma mais ampla, de 2,2 milhões de estupros por ano, e outra mais restritiva, de 822 mil casos.

Foi essa última que ganhou maior repercussão pública, talvez porque nós mesmos a destacamos no resumo do estudo, impressionados por sua magnitude. Afinal, tratava-se de quase dois estupros por minuto no Brasil. No resumo aparece:

Concluímos que o limite inferior do número de estupros no país se situaria num patamar de 822 mil casos por ano, o que corresponderia à ocorrência de quase dois casos por minuto no Brasil. A partir desse número, foi possível estimar que apenas 8,5% dos estupros estão sendo identificados pela polícia e 4,2% pelos sistemas de informação da saúde.”

Ainda assim, estaria a estimativa mais conservadora superdimensionada? Nossa avaliação é que não. A comparação com a pesquisa de vitimização criminal realizada na Inglaterra e no País de Gales demonstra a robustez dos dados. A pesquisa The Crime Survey for England and Wales, realizada em 2022, apontou prevalência de 0,3% de estupros consumados (ou 0,6% se incluirmos os tentados) entre pessoas com 16 anos ou mais. Esse número é extremamente próximo à taxa de 0,4% registrada no Brasil pela PNS. Ou seja, não há indício de que tenhamos superestimado o fenômeno. A grande diferença está não na prevalência da violência, mas sim no grau de notificação.

Na Inglaterra e no País de Gales, a polícia registrou 70.633 casos de estupro em 2022. No Brasil, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o número de registros policiais no mesmo período foi de 74.930. À primeira vista, esses números parecem semelhantes, mas é preciso lembrar que a população brasileira é 3,5 vezes maior. Isso significa que, proporcionalmente, denunciamos muito menos, o que reforça a percepção de que a subnotificação é um problema estrutural do país. Esse silêncio é alimentado por fatores históricos e culturais, entre eles a desconfiança nas instituições.

Nessa comparação entre países, percebemos duas coisas: primeiro, que os malefícios da cultura patriarcal atravessam fronteiras e contextos socioeconômicos; segundo, que ainda temos um longo caminho para construirmos a legitimidade das organizações policiais no Brasil, em sintonia com a cidadania.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.

Ilustração: Mihai Cauli
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