Duo Literário: Policial noir

“O Sono Eterno”, “Achados e Perdidos” e a influência de Raymond Chandler na obra de Luiz Alfredo Garcia-Roza

Noites chuvosas, ruas desertas, ambientes sombrios, um clima de mistério no ar. A sensação é de tensão e perigo iminente. Com tramas intrincadas e envolventes, a literatura noir nasceu nos Estados Unidos pouco depois da Primeira Guerra mundial, em revistas de segunda linha denominadas pulp. Um dos autores de contos e romances policiais mais lidos no mundo, Raymond Chandler (“A Dama do Lago”, 1943; “O Longo Adeus”, 1953) exerceu influência determinante na literatura do gênero, especialmente por sua linguagem ágil, direta, concisa, estilisticamente perfeita. Com sua prosa única, Chandler – criador do detetive particular Philip Marlowe, protagonista de todos os seus romances – foi um dos precursores de um estilo de escrever que influenciou escritores de diferentes gêneros.

Chandler também atraiu a indústria cinematográfica. Um detetive durão e uma Califórnia povoada por tiras corruptos, femmes fatales, marginais e chantageadores dava um ótimo roteiro. De quebra, proporcionava uma produção econômica: sua narrativa combinava com o clima de escuridão e chuva dos filmes B, de baixo orçamento, que disfarçava os cenários baratos. Não por acaso, o escritor contribuiu para o florescimento, nos anos 1940, do cinema noir*. Ele não só vendeu suas histórias para os grandes estúdios como também escreveu diversos roteiros, sendo o primeiro deles “Pacto de Sangue” (1944), dirigido por Billy Wilder, baseado no livro “Indenização em Dobro” (1936), outro sucesso do gênero, de James M. Cain.

Um dos fundadores do curso de pós-graduação em Teoria Psicanalítica da UFRJ e autor de uma respeitada obra analítica, Luiz Alfredo Garcia-Roza (1936-2020), autor do aclamado “Uma Janela em Copacabana” (2001), era fascinado por romances policiais. Especialmente pelas obras de Dashiell Hammett (“O Falcão Maltês”, 1929) e Raymond Chandler. Por isso, quando decidiu se aventurar, aos 60 anos de idade, pela ficção, não teve dúvidas sobre que gênero escreveria. Seu primeiro livro, “O Silêncio da Chuva” (1996), rendeu-lhe os prêmios Nestlé e Jabuti. E não demorou para que se tornasse um dos mestres do policial noir no país.

A influência de Chandler sobre Garcia-Roza aparece tanto no estilo literário quanto nas escolhas narrativas. Nos livros do norte-americano, as cenas de ação e violência importam menos do que comportamentos e palavras, e é possível sentir em cada página uma atmosfera de ceticismo, angústia e desconfiança – características do gênero adquiridas também por Garcia-Roza. No entanto, sua maior criação, o delegado Espinosa, é um personagem completamente diverso do Philip Marlowe de Chandler. Este último é um detetive cínico, perspicaz e durão, embora tenha seu lado generoso e sentimental. Um cara ríspido, destemido, sarcástico, mas no fundo de bom coração. Quem sabe o único sujeito honesto, apesar de moralmente ambíguo, numa cidade infestada pela corrupção.

Já o delegado concursado Espinosa – nome inspirado no pensador holandês Baruch Espinosa (1632-1677) – é uma pessoa culta e amante da literatura. Não propriamente um intelectual, mas um ser tímido e reflexivo. Ao contrário de Marlowe, que desvenda os casos mais espinhosos, Espinosa nunca conclui uma investigação de modo satisfatório, deixa sempre pontas soltas. Talvez porque esteja dividido entre a profissão e o desejo de abandonar o barco e abrir um sebo de livros. O delegado parece se preocupar menos com os crimes do que com os problemas existenciais.

Apesar de naturezas distintas, Marlowe e Espinosa têm algo em comum: ambos são seres solitários. Um vagando pela noite de uma Los Angeles sombria, perigosa e corrupta, o outro pelo bas fond de Copacabana, com suas prostitutas, achacadores baratos e matadores de aluguel. Neste Duo Literário, apresento duas obras desses dois grandes nomes da literatura policial: “O Sono Eterno”, primeiro romance de Chandler e primeira aparição do detetive particular Philip Marlowe, e “Achados e Perdidos”, segundo romance de Garcia-Roza.

O sono eterno (1939) – Raymond Chandler

Los Angeles, 1930. Os efeitos da Grande Depressão estão por toda parte. Uma cidade apinhada de perdedores e controlada por gângsteres, tiras corruptos e ricaços hipócritas e inescrupulosos. Os contrastes sociais saltam aos olhos. Em meio a esse cenário inóspito, o detetive particular Philip Marlowe é chamado à mansão de um velho general que o contrata para ir atrás de um homem que o está chantageando. Mas o detetive logo percebe que o velho também quer descobrir o paradeiro de seu genro desaparecido.

Na mansão, Marlowe conhece as duas filhas do general, lindas, complicadas e misteriosas. E com habilidade suficiente para metê-lo em encrencas. À medida que a investigação avança, ele logo se dá conta de que não se trata de um caso simples. Uma série de personagens intrigantes, acontecimentos nebulosos, relações complexas e segredos obscuros cruzam o seu caminho. E, como havia suspeitado desde que as conhecera, ele se depara com uma teia de mentiras envolvendo as duas beldades.

A obra, lançada após Chandler ter publicado dezenas de contos nas revistas pulp, é narrada em primeira pessoa pelo protagonista. Através do refinamento da narrativa, o leitor acompanha cada cena como se estivesse ali, ao lado de Marlowe, acompanhando-o nas ruas, em cada esquina e montando com ele as peças de um quebra-cabeça que aparenta não ter resolução. Ao longo desta jornada, vivenciamos a decadência de uma cidade assolada pela Grande Depressão e mergulhada na melancolia, no vício e na criminalidade.

Clássico noir eletrizante, “O Sono Eterno”, assim como os demais livros de Chandler, foi adaptado para o cinema sob o título “À Beira do Abismo” (1946), com direção de Howard Hawks (“Scarface, a Vergonha de uma Nação”, 1932). O thriller, considerado ainda hoje um dos melhores filmes noir de todos os tempos, é estrelado pela memorável dupla Lauren Bacall e Humphrey Bogart, que deu rosto ao intrigante detetive – cujo caráter e personalidade foram desenvolvidos a partir de diversos personagens de seus contos.

Achados e perdidos (1998) – Luiz Alfredo Garcia-Roza

As coisas vão bem para o delegado Espinosa. Transferido da delegacia da Praça Mauá para a 12ª DP, em Copacabana, na Rua Hilário de Gouveia, ele trabalha há 10 minutos a pé de seu prédio no Bairro Peixoto, onde vive em um apartamento sem estantes, lotado de livros empilhados. Com a mudança, sobra mais tempo para ler e frequentar os lugares perto de casa, como o restaurante árabe da Galeria Menescal, o Baalbeck, e o boteco Pavão Azul, em frente à 12ª DP. Ou dar uma esticada até o La Trattoria, na Rua Fernando Mendes, para comer uma massa italiana. Melhor que isso, só mesmo se abandonasse a profissão e abrisse um sebo de livros, desejo antigo.

Mas a vida de delegado de polícia não é fácil. Quando menos se espera, a rotina é quebrada de forma brusca. Tudo começa numa noite de sexta-feira, em pleno bas fond de Copacabana. O delegado aposentado Vieira se embebeda, deixa cair a carteira na sarjeta, um menino de rua se apossa dela. Ao se dar conta, pelos documentos encontrados em seu interior, de que pertencia a alguém da polícia, ele tira a grana e larga a carteira em um beco qualquer. Antes de se afastar inteiramente do local, vê um homem pegá-la e toma a decisão inesperada de segui-lo.

Poderia ser um fato corriqueiro. O que se segue, no entanto, são acontecimentos bizarros e brutais. Naquela mesma noite, a prostituta Magali, amante do ex-delegado, é asfixiada em sua própria cama, o que o coloca como principal suspeito do crime. Não bastasse, mais mortes se sucedem. E de repente o delegado Espinosa, apreciador dos livros de Raymond Chandler, se vê enredado em um caso complicado, espinhoso e violento, daqueles que só o detetive Marlowe, de quem é fã, seria capaz de resolver.

Para piorar as coisas, Vieira não se lembra de nada daquele dia fatídico. Espinosa o conhece bem, um cara rude, porém honesto, e tenta se convencer de que não foi o amigo que matou a própria amante. Ele sabe que Vieira é um velho beberrão, sabe que ele se esquece de tudo quando bebe, mas sabe também, ou pelo menos acredita, que o ex-delegado, além de bom investigador, não é um assassino. Por isso, une forças com o amigo para tentar solucionar um quebra-cabeça que envolve as mortes, além do asfixiamento de Magali, de dois meninos de rua, de um professor e do malandro que pegou a carteira de Vieira.

Com trama complexa e personagens intrigantes – como a insinuante e escultural prostituta Flor, que tem um fraco por delegados, e a pintora do calçadão da Atlântica Cristina, por quem Espinosa se apaixona –, “Achados e Perdidos” vasculha cada ponto de Copacabana. E, da mesma forma que Chandler revela em “O Sono Eterno” os contrastes sociais em um país assolado pela Grande Depressão, Garcia-Roza expõe de forma crua a desigualdade e a violência da sociedade brasileira. O clima de suspense e mistério permeia toda a história, e o final é inesperado. Para quem mora ou conhece bem o bairro, os cenários são mais um atrativo deste envolvente clássico da literatura noir.

* Segundo especialistas, o florescimento do cinema noir nos Estados Unidos é atribuído, acima de tudo, a cineastas alemães refugiados. Diretores como Otto Preminger, Robert Siodmak e Fritz Lang trouxeram à Hollywood lembranças do estilo desenvolvido nos estúdios de Berlim, em filmes com cenários escuros, jogos de sombras e clima claustrofóbico, como “M, o Vampiro de Dusseldorf (1931), de Lang. Mas há quem afirme que o gênero só evoluiu porque barateava os custos de produção.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone
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