Nos dois últimos artigos – um há um mês e outro há duas semanas –, seguíamos uma discussão que falava sobre o encadeamento de eventos desde a crise econômica de 2007-2008, passando pela nova onda de mudanças tecnológicas (que ganhou o rótulo de “Economia 4.0”), seguida pela pandemia da Covid-19 e continuando na Guerra da Ucrânia. Esses eventos serviram para aguçar a disputa da hegemonia do sistema internacional entre EUA e China, que é o movimento mais profundo em andamento.
O ponto importante aqui é que essas mudanças e essas reconfigurações pelas quais vai passando o sistema internacional abrem espaços antes inexistentes. Assim, o mundo unipolar do poderio estadunidense que se seguiu à queda do chamado Muro de Berlim e à desconstrução do bloco socialista, o mundo do livre-comércio e seu sistema multilateral e acordos bilaterais e plurilaterais que o complementavam e aprofundavam, o mundo das cadeias produtivas globais espalhadas pelo mundo e hegemonizadas pelo poder dos grandes investidores financeiros vai dando lugar a algo em transição, que está ainda se configurando em meio a disputas.
A volta da inflação mundial e das ameaças nucleares da velha Guerra Fria são apenas alguns elementos do passado que retornam. Com eles, volta também o papel estratégico dos Estados Nacionais, empurrados por um tempo, ao menos nas narrativas hegemônicas, para o quarto dos fundos da casa. O mundo aumenta sua complexidade e seus riscos, e entendê-lo se torna mais complicado. O mundo em que a China disputa a hegemonia, com sua complexidade econômica, não é para amadores. A desconstrução das relações simbióticas entre EUA e China, estruturadas desde os anos 1970, não será simples, seja do ponto de vista geopolítico, seja do ponto de vista das cadeias de produção, seja do ponto de vista das poderosas conexões financeiras que foram sendo criadas.
Os movimentos vão acontecendo e parecem não ter volta. Nada será como antes, embora tudo siga tendo suas conexões históricas, suas explicações balizadas por movimentos estruturais e conjunturais, em especial desde o fim da 2ª Guerra Mundial e da Revolução Chinesa, no fim dos anos 1940.
Para países como o Brasil, como dito no artigo da semana passada, tudo isso abre muitas, importantes e interessantes possibilidades, que podem ser aproveitadas ou não. Na disputa entre a França napoleônica e o Império Inglês em expansão, ocorreram os processos de independência dos países da América do Sul, nas duas primeiras décadas do século XIX. A decadência do Império Inglês e a ascensão hegemônica dos EUA abriram espaços para os processos de industrialização e o desenvolvimentismo em várias regiões do mundo, América Latina incluída. Agora, de novo, abre-se um espaço de transformação, que pode ser aproveitado positivamente – ou não.
O Brasil, como uma inserção econômica, cultural e política na América do Sul, seguramente pode ter um papel relevante nesse processo na região. A América do Sul, nos últimos cerca de 20 anos, caminhou quase que em conjunto no mesmo sentido, o de ampliar pesadamente o comércio com a China.
Por outro lado, o peso do comércio com a China, se permitiu aos países retomarem uma gestão menos crítica de seus balanços de pagamentos, não se deu sem sinalizar problemas. O principal deles é o fato de que a integração comercial com a China reforça um modelo extrativista, centrado na exportação de bens primários agrícolas, minerais e energéticos, ao lado da importação de produtos manufaturados. É a afirmação de uma América Latina pré-cepalina, de antes da tentativa de industrialização, o que é bem complicado. Por outro lado, as conexões culturais e sociais da região seguem sendo com os EUA e os países europeus. O que, se a disputa em curso persistir, pode apontar para um curto-circuito entre, digamos, a cabeça e o bolso.
Assim, seria importante aproveitar os espaços que se colocam, inclusive do ponto de vista produtivo e financeiro, para afirmar alguma alternativa não-subordinada aos novos sistemas hegemônicos, que possa se relacionar com eles mantendo sua autonomia. Essa possibilidade só ganha músculo significativamente com o processo de integração regional, em que os países da região possam visualizar oportunidades dentro das mudanças do sistema, e isso será menos conflitivo se puderem atuar de forma concertada. Dado o peso e o papel do Brasil, evidentemente os rumos e posições que o Brasil possa tomar ajudarão os demais países da região na busca de alternativa. Mas é muito importante perceber que o Brasil, neste momento, até aqui, parece encontrar enormes dificuldades para definir os seus próprios rumos…
***
Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
Sobre o tema, veja também o comentário de Paulo Nogueira Batista no vídeo “A retomada da integração da América Latina e do Caribe“.