“Imaginar outras possibilidades de viver e inventar narrativas é um fenômeno humano que decorre da nossa própria condição de incompletude.”

As dúvidas sobre as escolhas que fizemos durante a vida não elegem dia, horário nem lugar para aparecer e perturbar nosso sossego e nossas frágeis certezas. Uma música, um filme, uma perda, um adoecimento, uma decepção amorosa e mesmo uma imagem aleatória são potencialmente capazes de trazer à superfície da consciência uma pequena e perturbadora pergunta que basta para abrir a virtualidade de uma outra realidade que poderia ter se realizado nesta mesma vida: “E se…?” “E se eu tivesse dito ‘não’?”; “E se eu tivesse respondido à mensagem?”; “E se eu não tivesse pedido demissão?”; “E se eu tivesse mudado de cidade?”; “E se eu (não) tivesse filhos?”.

Carregamos ao longo da vida muitas interrogações que fertilizam o pensamento e a imaginação com possibilidades existenciais distintas daquelas que vivemos. Por vezes, alguns desses “se” extrapolam seu prosaico aparecimento para dar lugar a um impasse doloroso e gerador de “crise existencial” que nos interpela sobre os graus de responsabilidade e liberdade que permeiam nossos atos e seus efeitos. Em outras palavras, são momentos em que nos vemos confrontados com a nossa tomada de posição diante do mundo e de suas demandas.

Vidas passadas (Past lives), filme da sul-coreana Celine Song, apresenta uma trama sensível que conta os desdobramentos de um romance infanto-juvenil – ainda em germinação – interrompido pela decisão de emigrar da família da jovem. Mais de duas décadas depois e tendo trilhado caminhos distintos de vida, os protagonistas (Nora e Hae Sung) se reencontram. Em vez de assistirmos à narração de uma história romântica sobre o amor perdido no passado, no filme nos deparamos com as vicissitudes e os destinos dos afetos, das lembranças e dos desejos sonhados e suspensos por conta da separação precoce dos protagonistas. A narrativa concede espaço às palavras naquilo que é possível de ser dito; mas é quando elas se tornam secundárias ou mesmo quando saem de cena deixando em evidência o silêncio – naquilo que se escolhe não dizer ou no que não se consegue articular pela via do sentido e da representação –, que conseguimos ler/ver a estrutura e a beleza tocante de uma poesia visual, composição condensada do que foi vivido, do que poderia ter sido e ficou no passado, do que poderia ser vivido agora e não será, do que está sendo vivido no presente – como satisfação e como falta – e do que deixará de ser vivido.

Tratada de maneira primorosamente delicada, essa tensão se manifesta em diversas cenas. Uma dessas tensões, em especial, já perto do final do filme, é destacada quando os dois protagonistas, postados frente à frente, despedem-se sem dizer nada. Espectadores envolvidos pelo que se passa na tela, somos capazes de sentir a angústia que os aproxima, movendo-os um em direção ao outro para, no mesmo instante, fazê-los parar. A cena recobre e desvela na mesma medida as múltiplas possibilidades de escolha desse momento: na sua hesitação, o reconhecimento da responsabilidade que ambos deverão assumir por qualquer ato que consumarem, não apenas pelo que sabem a respeito de si mesmos, mas fundamentalmente por aquilo que, sem saberem em sua plenitude, implica-os um em relação ao outro.

Na língua portuguesa, “destino” significa aquilo que “está escrito”, determinado (pela ordem divina, cósmica ou outra qualquer); mas o vocábulo também serve para designar o lugar ou rumo para o qual alguém pode se dirigir (o destino pode ser, inclusive, um vagar sem destino). Nesta modalidade, o destino subverte a força do escrito e se abre ao porvir.

Outro diálogo paradigmático acontece entre Nora e seu companheiro estadunidense quando este conjectura acerca de realidades alternativas que poderiam ter acontecido caso fatores diversos tivessem se interposto no relacionamento entre eles (“e se…”; “e se…”), ao que ela responde: “não é assim que a vida funciona”. Ainda que, em algum momento – como nesta cena –, alguém bem-intencionado nos lembre que o “se” não existe concretamente, imaginar outras possibilidades de viver e inventar narrativas é um fenômeno humano que decorre da nossa própria condição de incompletude. Nesta concepção de sujeito, a falta é considerada de diferentes perspectivas, inclusive como motor do desejo.

Compreensivelmente, por sermos humanos, por vezes cedemos ao fascínio da ilusão e gostamos de pensar que um olhar, uma palavra, um “não” ou um “sim” poderiam ter mudado o que nos aconteceu de infortúnio ou frustração: é quando ligamos aquele “e se…” para alguma coisa que supomos poderia ter ocorrido de maneira diversa. Esse é o momento em que questionamos o destino. Ainda que cada um de nós leia sua vida a partir dos efeitos de uma determinação (escrito/destino), a despeito da liberdade pessoal e do acaso, um resto de entendimento sobre os desígnios da existência nos escapa: o que fazer com nossos lutos ordinários como um desejo infantil irrealizado, um projeto adolescente abandonado, um amor impossível? Assim como no filme, viver também se traduz por deixar partir. (Publicado no Sul 21 em 27/02/2024)

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Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone
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