Quando se fala em Trump, os olhos se dirigem para pontos opostos, como naquela velha expressão, um olho no peixe, outro no gato. As manchetes da imprensa estadunidense vão em dois sentidos. Um deles se refere aos processos judiciais que enfrenta Donald Trump em mais de um estado daquele país. O outro observa o processo eleitoral, e as pesquisas eleitorais que apontam uma perspectiva real de vitória da candidatura Trump, contra o atual presidente Biden, no final desse ano. Vale pontuar ainda que, no caso dos EUA, essas duas coisas não são contraditórias.

A perspectiva de uma prisão do cidadão Trump, embora possa ser bastante desejada, não é o objeto da discussão aqui. A grande questão é a possibilidade de eleição do candidato Trump, que já passou o trator nos demais pré-candidatos republicanos, assumindo a designação de candidato daquele partido nos EUA. E suas consequências para os EUA, o mundo e o Brasil.

Antes de mais nada, há que perceber que neste momento, olhando de longe, o processo eleitoral desse ano nos EUA, assim como em parte foi o anterior, quatro anos atrás, é um processo de rejeições (dessa vez bem mais do que na eleição anterior). Ambos os candidatos têm enorme rejeição, e é isso que mobiliza o eleitorado mais do que qualquer coisa. Vai ser importante ver também como vai ser utilizada essa rejeição pelos dois candidatos na campanha, e como vai se comportar o eleitorado face a eles e também aos muitos outros candidatos que se apresentaram, nenhum com chance de ganhar, mas alguns com chances de fazer estragos nas duas principais candidaturas, em especial na candidatura Biden.

Trump conta com isso, seguramente, e já mostrou que sabe utilizar muito bem a rejeição do “outro candidato”, como fez com sucesso contra Hillary Clinton há oito anos, e também como fez há quatro anos contra o próprio Biden, com sucesso na utilização do instrumento, mas sem o necessário sucesso para reverter o resultado eleitoral. De qualquer forma, isso aponta para uma clivagem que vai se aprofundando na sociedade estadunidense, onde os diversos segmentos sociais e algumas configurações regionais vão se radicalizando.

Alguns analistas apontam que os consensos sobre temas fundamentais (tão importantes quanto o próprio futuro dos EUA, mas também outros como aborto, integração social, participação de negros e imigrantes e outros temas) vão ficando cada vez mais difíceis, e os mais pessimistas entre estes chegam a falar na possibilidade de uma nova guerra civil, um trauma de cerca de um século e meio da sociedade estadunidense quando, por causa da impossibilidade de administrar politicamente uma diferença fundamental sobre o tema da escravidão, a questão foi resolvida por um conflito militar armado entre as elites estaduais. A vitória de Trump pode fazer essas diferenças avançarem ainda mais, mas vale observar que mesmo uma derrota, nesse caso, pode apontar no mesmo sentido, dadas as diferenças regionais de visão de mundo que aparecem agora, como apareceram no passado.

A outra questão essencial diz respeito ao mundo. As duas candidaturas assumem uma disputa hegemônica fundamental entre EUA e China no próximo período. Aliás, Trump já assumia essa disputa há oito anos (vale observar que mesmo Obama, o anterior presidente, operava também de fato com essa lógica, embora não colocasse o tema no centro de seu discurso, muito mais de defesa do multilateralismo).

Trump se preocupa muito menos com as sutilezas da disputa diplomática, com a coordenação multilateral, em especial no período recente em fóruns com os parceiros econômicos europeus e asiático, como o G-7 (EUA, Canadá, Japão, Reino Unido, França, Itália e Alemanha), ou mais diversos, como o G-20 que se reúne esse ano no Brasil (África do Sul, Alemanha, Arábia Saudita, Argentina, Austrália, Brasil, Canadá, China, Coreia do Sul, Estados Unidos, França, Índia, Indonésia, Itália, Japão, México, Reino Unido, Rússia e Turquia, além de conjuntos de países, como a União Europeia e, a partir dessa décima nona reunião, a União Africana), mas também no Sistema ONU.

Trump representa o velho unilateralismo dos EUA, o que é muito perigoso em um momento de disputa hegemônica. Mesmo em instituições militares, como a OTAN, Trump avisa que vai tratar os europeus na truculência, cobrando um aumento das contribuições financeiras europeias à organização e ameaçando deixar os europeus expostos caso não sigam suas orientações.

No caso de outra instituição importante da governança global, como a Organização Mundial do Comércio (OMC), a proposta de Trump de sobretaxar unilateralmente os produtos chineses é um desafio tão forte ao que está estabelecido neste momento que pode pura e simplesmente representar o fim da organização como regulador multilateral do comércio mundial. Só para ficar em alguns exemplos, que mostram que a atitude de Trump na presidência pode representar o fim do mundo da regulação multilateral que conhecemos hoje.

Finalmente, algumas considerações em relação ao Brasil. Ou talvez apenas uma, só para fazer pensar. É possível imaginar o que seria o Brasil hoje se no pós-eleição de Lula, no final de 2022, ou na intentona golpista de 8 de janeiro de 2023, Trump fosse o presidente nos EUA? Pois é, só para refletir um pouco. Os efeitos sobre o Brasil, e toda a América Latina, poderiam ser devastadores. Em especial porque em um cenário internacional de disputa hegemônica com a China, há que lembrar o peso efetivo que tem o comércio com a China para os países da região hoje. Para o Brasil, além de uma questão de comércio e investimentos chineses, tem toda a parceria que vem da relação nos BRICS e em outros fóruns.

É de fato assustador pensar nas consequências de uma vitória de Trump no processo eleitoral desse ano. Tão assustador que, na medida em que essa ameaça se torna mais concreta, seria absolutamente necessário pensar em estratégias nacionais para o pós-eleições nos EUA.

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Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone
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