Na imagem, o economista John Maynard Keynes

Nos dois artigos anteriores publicados no Terapia Política chamamos atenção para a natureza estritamente ideológica da teoria neoclássica (TN) e para os efeitos deletérios da sua hegemonia contemporânea sobre a vida pessoal e coletiva da maioria da humanidade; e, especialmente no último, para o fato dela se impor de maneira avassaladora sobre as outras três grandes matrizes ideológicas da modernidade; e.g., a socialista, a nacionalista e a social-democrata.

No caso da primeira vertente, a socialista, nem com os graves problemas que o capitalismo vem apresentando, notadamente nos últimos 40 anos, essa matriz ganhou efetiva relevância na escala-mundo. Para tal, alguns fatos históricos e dados sentidos negativos foram decisivos, a saber: a apontada hegemonia, firmada com a doutrina neoliberal em todos os âmbitos societários (o cultural, o econômico etc.); o discurso da globalização, que subliminarmente passou a ideia equívoca de universalização, homogeneização e inclusão; a derrubada do muro de Berlim, pelo seu valor simbólico (mundo sem fronteiras); as experiências concretas do chamado socialismo real, associadas que foram à repressão política, à falta de dinamismo econômico etc.

A segunda vertente, a nacionalista, também foi impactada negativamente pela força da internacionalização do capital em curso, pela exegese do livre mercado etc. Ademais, dois antigos entendimentos continuam fragilizando politicamente essa matriz: um deles é a identificação do nacionalismo com o nazifascismo, Estado autoritário etc. e o outro a rejeição às lutas nacionais, posto determinados segmentos sociais entenderem que elas alienam a pugna que deveria ser a central, a das classes sociais em nível internacional. Enfim, independente de qualquer juízo de valor, o nacionalismo foi tornado menor nos tempos correntes, em especial no mundo ocidental. Não obstante, observe-se que ele continua presente nos dias atuais em dadas partes do planeta exatamente pela força da chamada globalização, do imperialismo dos Estados Unidos da América (EUA) e dos projetos expansivistas de poder da China e da Rússia.

Resta considerar então a terceira matriz, a social-democrata. Ela foi igual e negativamente impactada pelas mudanças em curso. Na realidade, dado que essas mudanças se fizeram na sua contraposição, pode-se dizer que a vitória do neoliberalismo está na base da derrota do reformismo social-democrata. Todavia, diferentemente das outras duas matrizes, vale observar que essa vertente continua sendo entendida “urbi et orbi”, resilientemente, por vezes com pitadas de nacionalismo, como a única alternativa capaz de ainda fazer frente ao caráter deletério (como anotado antes) do atual estágio histórico do desenvolvimento capitalista.

Isto posto, urge considerar minimamente a obra clássica desse autor: a Teoria Geral, do Juro e do Dinheiro (1936) e em especial o capítulo Observações diversas sobre a natureza do capital. Como segue.

Keynes parte da seguinte pergunta: por que em uma economia de mercado – ele evita o termo capitalismo – a renda e o emprego flutuam ao longo do tempo, podendo essa flutuação inclusive se desdobrar em agudas recessões e até mesmo em depressões (econômicas)? Para esse autor, dada a natureza dessa economia, isso aconteceria por conta do fato de as decisões empresariais de gasto, em especial as de investimento (compra de máquinas e equipamentos, simplificando), serem tomadas atomisticamente, denominadas em dinheiro e feitas em ambiente de inescapável incerteza.

Mais detidamente: a correção dessas decisões de gasto, por suposto formuladas “ex-ante”, apenas excepcionalmente poderiam ser confirmadas “ex-post”. E isso mesmo sem apelar para o recurso tempo cronológico, pois o tempo lógico do cálculo capitalista lhe basta. E.g., pela sua natureza essa economia não teria como garantir nada a-priori e muito menos o pleno-emprego de todos os recursos disponíveis como apregoado pela TN. É nesse contexto, enfim, que Keynes propõe a necessidade da chamada intervenção do Estado – que é tudo que os economistas liberais rejeitam. Para melhor entendimento dessa defesa/proposta uma frase desse autor é bem ilustrativa; ela afirma mais ou menos o seguinte: “que a guerra é coisa muita séria para ser deixada nas mãos exclusivas dos generais, assim como o capitalismo o é para ser deixado nas mãos apenas dos empresários”. Ou seja: o capitalismo exigiria para o seu próprio bem a tal intervenção do Estado.

Mas observe-se que ele faz essa defesa com a plena consciência de que nesse modo de organização da vida social o Estado pode muito, mas não pode tudo. Isso porque as decisões centrais dessa economia estariam nas mãos dos empresários privados. Por conseguinte, sua defesa da intervenção estatal é também uma confissão das dificuldades estruturais existentes, pois, dado o já exposto, ela não poderia senão tentar mitigar a natureza congênita de uma economia/sociedade condenada à ‘entropia’.

Quais são então suas propostas de mitigação da instabilidade visceral do capitalismo? São elas: a criação de organismos internacionais que contribuíssem para a promoção do desenvolvimento dos seus associados (Banco Mundial) e para prestar socorro emergencial no caso de acontecerem problemas em seus balanços de pagamentos (Fundo Monetário Internacional) – regulação essa que sabidamente era idiossincrática para os economistas do seu tempo – e continua sendo; a adoção de políticas monetárias e creditícias que estimulassem a renda e o emprego quando de crises econômicas, o que também vai de encontro à defesa da política monetária neutra dos neoclássicos; idem para as políticas fiscais, posto que Keynes entendia que o déficit público (despesas maiores que receitas) não seria necessariamente ruim, antes pelo contrário, especialmente em situação de grave queda da demanda agregada – aqui outra vez ele mostra o equívoco perverso dos economistas neoclássicos que defendiam essa tese inclusive durante a grande depressão de 1929; e, o estabelecimento de regras que viessem a disciplinar o mercado financeiro quando ele ao invés de aportar recursos para as atividades geradoras de riqueza real passasse a obstá-las, ‘alimentando-se’ a si mesmo e às expensas desse mesmo lado real da economia. Numa frase de efeito: quando os negócios fabris e seus lucros fossem escanteados pelo cassino e seus juros.

Acrescente-se, conforme as assinaladas Observações, que as preocupações de Keynes iam bem além do chamado economicismo. A defesa de uma “concertación” institucional de âmbito mundial, como expresso nas suas participações enquanto representante inglês nos Acordos de Versalhes (1ª Guerra) e de Bretton Woods (2ª Guerra), de alguma “pax” entre capital e trabalho, e de maior participação dos trabalhadores na renda nacional (mirando na expansão do mercado) são mostras do ideário desse economista tão singular.

Também vale assinalar que essa sua ampla e rica perspectiva ganhou corações e mentes pós-2ª G.M., vindo a se tornar hegemônica daí até meados dos anos 1970; e que com os muitos problemas econômicos e sociais que eclodiram no entorno desse último ano (inflação, déficit público, greves etc.), eles foram imediatamente creditados na sua conta – ou seja: das políticas keynesianas. É dizer: a culpa seria de Keynes e do Estado interventor social-democrata que ele recomendara e avalizara, bradavam os liberais. Assim sendo, eles que estiveram na ‘clandestinidade’ no período keynesiano (leia-se: Mises, Hayeck) proclamaram que a solução era ‘apenas’ mais mercado e menos Estado! E foi sob o signo dessa ‘troca de sinais’ que se passaram os últimos 40 anos… mas em termos, como segue.

Isso porque é falso dizer que o Estado saiu de cena e tudo passou a ser mercado. Senão como explicar: a monumental sangria de recursos públicos, principalmente via dívida mobiliária, para os ‘piratas’ contemporâneos que operam tanto dentro quanto fora dos países; igualmente como explicar a retirada de tantos direitos sociais e trabalhistas sob a verbalização de que isso seria bom (…) e que a economia melhoraria; o poder desmedido e o raio de ação espacial das grandes empresas globais etc. Definitivamente, nada disso seria realidade sem Estado forte contra os ‘de baixo’ e marcadamente comprometido com os interesses dos ‘de cima’.

Concluindo: a verdade é que nunca a distribuição da renda e da riqueza foi tão perversamente gravosa como nessa era de ouro liberal e de loas às proclamadas virtudes do suposto livre mercado, assim como nunca se mostrou tão problemático fazer crescimento econômico e gerar emprego de modo sustentado no tempo. Logo, mostra-se compreensível que muitas pessoas continuem ou estejam agarradas no que imaginam ser a tábua de salvação keynesiana. Não é para menos, afinal seu reformismo pelo menos aponta para algum padrão civilizatório de desenvolvimento diante da barbárie em curso!