Dissemos no artigo anterior publicado no Terapia Política que a Economia é um campo de batalha, posto que os economistas dos últimos quase cem anos apresentam seus diagnósticos e conseqüentes prescrições a partir de referenciais teóricos distintos, conflitivos e, em alguns casos, até mesmo antagônicos. Ainda: que esses diagnósticos e prescrições consideram direta ou indiretamente as obras seminais dessa área de conhecimento, tendo como ponto de partida a Riqueza das Nações de 1776 (de A. Smith) e ponto de chegada a Teoria Geral de 1936 (de J. M. Keynes). Isto é: que o campo de batalha em tela está fundado em autores e/ou escolas de pensamento econômico que vêm do passado; mais precisamente, do período acima referido.

Três comentários se seguiram: a) que nesse intervalo de tempo há outros autores e/ou escolas também seminais, como o são List, Marx, Marginalistas (Neoclássicos), Schumpeter etc.; b) que esse fato não implica na inexistência de importantes contribuições antes, durante e depois desses autores e/ou escolas. A esse respeito vide sintética e respectivamente os aportes dos mercantilistas e fisiocratas na transição do feudalismo ao capitalismo, os de Kalecki (dado que o “coeur” das suas formulações foi publicado entre 1933-35) e os dos póskeynesianos e neoschumpeterianos no pós-1970; e, c) que face os referenciais teóricos aludidos, os diagnósticos e prescrições apontados são inescapavelmente ideológicos, daí o campo de batalha constante no parágrafo anterior.

Deriva do exposto e do artigo passado uma dimensão ainda não examinada; ela é a seguinte: os embates travados entre os supramencionados autores e/ou escolas, bem como os que se seguiram a partir deles, mas neles fundados, não são meramente formais, pontuais ou idiossincráticos. Por que? Porque eles inscreveram na agenda pública, por conta da natureza e sentido maior das suas elaborações, algo verdadeiramente decisivo: as matrizes ideológicas da modernidade. Explicando: os embates em questão indicam não apenas divergências teóricas e propositivas, mas, sobretudo, singulares formulações acerca dos possíveis rumos do próprio capitalismo. Logo, é correto afirmar que essas matrizes transcendem diagnósticos e prescrições de resolução de problemas tipo inflação, distribuição de renda, crescimento econômico, déficit público etc.

Isto posto, consideraremos apenas quatro dessas matrizes (por nós entendidas como as mais importantes); como segue: a dos chamados economistas clássicos, a de List, a de Marx e a de Keynes. A primeira vertente, fundada principalmente por Smith e Ricardo, aponta para a chamada economia de mercado; leia-se: para o Capitalismo Liberal. A segunda também aponta para o capitalismo, mas defende que ele deveria ser protegido até que todos os países estivessem em condições de igualdade na economia-mundo. Vale dizer: ela defende um Capitalismo Protecionista ou Anti-Liberal; melhor, um capitalismo com marcada presença do Estado Nacional. Marx, por sua vez, não inscreve na sua reflexão nenhuma solução capitalista, tendo em vista a crítica visceral que elabora sobre esse sistema sócio-econômico, e sim a perspectiva Socialista. E Keynes, como se sabe, tem em vista um Capitalismo Social-Democrata.

Portanto, temos aí três abordagens pró-capitalistas e uma anticapitalista (digo: Socialista). Essa última dispensa maiores comentários na medida em que Marx antevê uma sociedade na qual a lógica da valorização do capital seria suprimida, bem como as classes sociais polares existentes (capitalistas e trabalhadores) no modo de produção capitalista – adendo: para ele isso ocorreria pelas contradições internas e lutas políticas que esse modo (em tempo: um conceito marxista) ‘naturalmente’ ensejaria.

Já no caso da chamada Economia Clássica de A. Smith, D. Ricardo e T. Malthus, apesar das marcas específicas das obras de cada um desses intelectuais, pode-se dizer que eles defendiam o chamado livre-mercado e o espírito empreendedor de indivíduos libertos de qualquer imposição externa (do Estado, por exemplo). Adiante no tempo, na passagem do século retrasado para o passado, essa perspectiva foi reformatada pelos chamados economistas neoclássicos com a exaltação da figura do “homo economicus” e a matematização das suas análises e, finalmente, tornada hegemônica no mundo pós-1980 graças ao receituário então aviado pelo Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional – vide a respeito o chamado Consenso de Whashington, de 1989. Por sua vez, List, economista alemão de meados do século XIX, considerando o ‘atraso’ do seu país e o poderio econômico da então hegemônica Inglaterra, defendia a necessidade da adoção de medidas protecionistas estatais relativas ao mercado e às empresas nacionais, demarcando assim clara dissenção com o liberalismo dos economistas clássicos.

Keynes, como sugerido, é outro crítico do liberalismo – em pese ter sido educado formalmente em tal tradição política e teórica (em Cambridge). Nesses termos, possivelmente também por causa, o faz de maneira muito especial, pois critica por dentro os neoclássicos tanto nos seus fundamentos teóricos e premissas (agentes econômicos racionais, negação da variável tempo etc.) quanto nas suas prescrições (orçamento equilibrado, política monetária neutra etc.). Esse autor, enfim, entende que essa teoria e suas recomendações agudizariam a instabilidade macroeconômica, problematizariam sobremodo o processo de geração de emprego e renda, e aprofundariam a anomia social. Vale sublinhar nesse ponto que todas essas dimensões problemáticas para Keynes seriam inerentes ao capitalismo, valendo aqui reter ‘tão somente’ seus agravamentos, dadas às prescrições emanadas da tradição neoclássica. Avançando: observe-se que dada à condição de homem assumidamente burguês ele não mirava na superação do capitalismo, como Marx, e sim na elaboração de propostas reformistas que operassem para a sua preservação (‘mais civilizada’, diga-se), bem como soerguessem a própria Inglaterra, atropelada que fora pela segunda onda industrializante verificada na passagem do século XIX para o XX – e.g., pelas experiências então verificadas na Alemanha, no Japão e nos EUA, principalmente.

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Passados tantos anos impressiona como essas matrizes ideológicas permanecem vivas nas falas, conscientes ou não, da ampla maioria da humanidade. Também impressiona como elas continuam dividindo o mundo entre capitalistas e socialistas no caso das visões de mundo mais antagônicas. Igualmente impressiona a clivagem de perspectivas existente entre os que entendem que o capitalismo é o único caminho: a dos partidários do mercado acima de tudo (desde os liberais clássicos aos neoliberais passando pelos neoclássicos pontificados por Marshall, Walras e Pareto); a dos defensores de ‘soluções’ protecionistas via Estado Nacional (List); e a dos que propugnam reformas que contribuam para o crescimento econômico, a geração de emprego, o estabelecimento de alguma “pax” entre capital e trabalho, o aumento do mercado de consumo etc. (aspectos esses entendidos por Keynes como essenciais para o alcance do seu projeto macro-político).

Diante do exposto, além da sua histórica resiliência, como mostramos no artigo passado, trivial assinalar que uma dessas matrizes tem logrado ser plenamente vitoriosa: a das práxis liberais ora travestidas de neoliberalismo. Para tal, diversos são os sujeitos sociais que para ela concorreram e/ou concorrem: a esse respeito vide as políticas dos Chicago’s boys no Chile nos anos 1970’s, as verbalizações e as práticas de M. Thatcher na Inglaterra nos anos 1980 (o que também vale para o caso do ex-presidente Reagan dos EUA nos mesmos 1980’s), os sucessivos ensaios teóricos dos economistas que se seguiram de M. Friedman até o advento Consenso de Whashington, os discurso de louvação do mercado dos ‘economistas de banco’ e também de jornalistas ditos especializados em economia etc. Em suma: todos eles cumpriram e cumprem papeis decisivos para a exegese das referida práxis e, no limite, a interdição do debate público acerca das demais matrizes. Por conseguinte, firmada hegemonicamente graças ao mantra político-ideológico liberal que lhe dá sustentação, os interesses econômicos que defendem seus arautos seguem firmes e sem contestações capazes de lhes fazer efetiva frente…

Por fim, destaque-se que as ondas advindas das práxis vitoriosas em curso possuem natureza tsunâmicas na medida em que alcançam gravosamente todas as esferas da vida privada e social – e o mundo capitalista dos últimos aproximados quarenta anos está aí para confirmar essa assertiva. Por conseguinte, as disputas pela adoção da política econômica A ou B, embora importantíssimas, são apenas (sic) espumas de ondas gigantescas; é dizer: as de definição dos rumos não somente da economia, mas em verdade da própria vida individual e coletiva em praticamente todas as partes do planeta…nos tempos atuais.