Fevereiro de 1886. O ambiente, já inflamado pelas publicações contrárias à escravidão e pelas denúncias de maus tratos às negras e aos negros, fervilhou com a notícia dos acontecimentos contra as escravas Eduarda e Joanna. Narra-se que, precisamente no dia 11, a primeira se apresentou na redação do Gazeta da Tarde para buscar ajuda. Ia à Chefatura de Polícia reclamar dos espancamentos sofridos por ela e Joanna, mas lhe aconselharam o Jornal porque lá lhe dariam atenção. A Confederação Abolicionista do Gazeta, de fato, a acolheu e, mais do que isso, iniciou o movimento de sensibilização da comunidade e a assessoria jurídica imprescindível às suas defesas.
As marcas das atrocidades sofridas foram apresentadas ao público por José do Patrocínio, João Clapp e outros que, após cortejo até o juiz Monteiro de Azevedo, exigiram as medidas criminais cabíveis.
Vejam um trecho do que fora noticiado na Gazeta de Notícias de 12 de fevereiro de 1886: “A população d’esta capital assistiu hontem a mais uma scena triste e horrivel, que tem origem na nefanda instituição da escravidão, a que o Sr. chefe de policia tem prestado os mais relevantes serviços. Hontem pela manhã apresentou-se no escriptorio da Gazeta da Tarde uma miseravel creatura de nome Eduarda, escrava da Sra. D. Francisca Silva Castro, mulher de José Joaquim de Magalhães Castro e moradora à praia de Botafogo. A infeliz queixava-se de que tinha recebido de sua senhora os mais barbaros castigos. O rosto d’essa desgraçada creatura apresentava um aspecto horroroso: os olhos completamente fechados por causa de inflammação das palpebras; a testa coberta de chagas; a face entumecida e gottejando sangue; os pulsos cobertos de profundas feridas e largas escoriações, feitas com cordas ou qualquer outro instrumento de supplicio; no corpo e braços signaes evidentes de sevicias, alguns antigos e outros muito recentes. Mal cobria-a um vestido rasgado, que lhe deixava vêr o emmagrecido corpo, e a deixava descomposta; pois não vestia camisa. O miserando aspecto da desventurada creatura causava dó ao mais empedernido coração! Do escriptorio da Gazeta da Tarde, onde foi ella vista por muitas pessoas, representantes da imprensa etc., foi a desgraçada levada pelo Sr. Clapp, presidente da Confederação Abolicionista, e muitos outros cavalheiros, à presença do Sr. Dr. Monteiro de Azevedo, juiz do 11º districto criminal, afim de promover a sua libertação e intentar acção criminal contra os seus algozes. Eduarda declarou em presença d’aquelle juiz, que em casa de sua senhora estava uma sua companheira, que se achava no mesmo estado que ella, em virtude de barbaros castigos que lhe foram applicados por sua senhora, pelos motivos mais futeis, – como por exemplo esquecer-se de limpar um movel! À vista dessa declaração, o Sr. Juiz expediu um mandado, requisitando a presença da outra infeliz”.
Assim, o magistrado ouviu o depoimento de Eduarda, ordenou a apreensão de Joanna, as “depositou” na casa de Bartolomeu França e viu-se diante da obrigação de romper com os excessos da tradição escravocrata de poder absoluto sobre a sua propriedade escrava, lançando o poder judiciário no reconhecimento formal de um certo “humanitarismo”, atribuindo o papel de vítima a quem constantemente era visto como agressor.
Joanna não resistiu, morrendo no dia 14 do mesmo mês. Pela natureza das lesões e pelas circunstâncias dos delitos, a acusação recaiu sobre D. Francisca da Silva Castro, dona das moças violentadas. Com o propósito de alegar irresponsabilidade, D. Francisca foi internada em 20 de fevereiro do mesmo ano e seu marido, José Joaquim de Magalhães, ingressou com processo de interdição da mesma e com requerimento de sua nomeação como curador, alegando que sua mulher sofria de alienação mental.
Após a inquirição das testemunhas, com todas afirmando a loucura de D. Francisca, foram juntados ao processo os laudos dos peritos. Datado de 31 de março de 1886, o primeiro foi assinado pelos Drs. João Pires Farinha e Nuno de Andrade, que diagnosticaram “moléstia medular de Stieling” e “dupla hiperesthesia ovariana”, com grande probabilidade de “hysteria”. Pelas placas de anestesia irregulares e disseminadas pela pele, constatou-se a baixa sensibilidade cutânea e, consequentemente, a forte tendência à modalidade grave de histeria. Para confirmá-la, procederam os peritos à compressão demorada do ovário esquerdo, o que provocou um “ataque de nervos”, com violenta crise convulsiva, tremor da mandíbula e formação de espuma, cessando prontamente à pressão do órgão de onde partiu a “aura”.
No dia seguinte, sua confirmação também veio pela provocação de outro ataque menos intenso pela pressão do “ponto hiperestherico do vertex” e, subsequentemente, pelo hipnotismo com insensibilidade geral. Sentenciam, então, que “achava-se resolvido um dos problemas clinicos e diagnosticada a grande hysteria”.
Cumpria-lhes, agora, procurar datar o aparecimento da histeria, percorrendo a história da doença e, para tal, deveriam se valer do testemunho da própria paciente, de conhecidos dela e/ou de médicos. Descartaram, de imediato, o depoimento de D. Francisca, porquanto havia dúvidas sobre a integridade mental e pela tendência das histéricas à mentira. Circunscreveram-se, pois, às opiniões dos colegas que, alguma vez, durante um período aproximado de 20 anos, examinaram D. Francisca. Somam-se, ao todo, 21 nomes na lista fornecida por José Joaquim, da qual extraem-se médicos que, voluntariamente, proferiram “certificados”. No certificado do Dr. Isidoro de Moraes, que tratou da paciente por mais de 15 anos, o diagnóstico de “hysteria chronica” estava firmado. No certificado do Sr. Dr. Figueiredo Magalhães se lê que D. Francisca “soffre de hysteria ha longos annos” e nos certificados dos Srs. Drs. Alfredo Valdetaro e Felippe Meyer se consigna a “chronicidade da mesma molestia”.
Nessa análise pregressa da doença (ou da vida da paciente), os peritos fixam o começo da puberdade, aproximadamente aos 15 anos de idade, como um marco para os frequentes e duradouros ataques, quando passou a protagonizar cenas de “escandalosa insubordinação”, firmando um caráter “caprichoso e exigente”.
Por não manifestar saudades de casa, nem dos filhos e por não revelar prazer em ver o marido ou lástima por deixá-lo, os peritos ressaltaram uma forma de “entorpecimento emocional”. Por isso, transformava a ordem em desordem doméstica, embora materialmente tudo recebesse. Vivia confortavelmente, mas isolava-se em seu quarto, dando pouca importância à tranquilidade do lar, à educação dos filhos ou a seus deveres conjugais, restringindo-se à “faculdade de gastar dinheiro e ao decubito continuo!”, desabafam os médicos.
No segundo laudo, de 30 de março daquele mesmo ano, assinado pelo Dr. Cincinato Lopes, igualmente como seus pares o perito consignou o fenômeno de que a compressão ovariana desencadeia ataque de histeria “major”, também revelado pela “excitação hyperesthesica” de um ponto da parte superior da cabeça. Não passa despercebido, aqui também, o histórico familiar e as informações de outros médicos, bem como a indiferença dela à vida comum e seus caprichos indóceis. Por ter como incompreensíveis as atitudes de D. Francisca perante as regras usuais da moral, o perito as atribui a uma série de “perversões mentaes”, exemplificando com seu descaso pela família e pela acusação que lhe recai: “totalmente indifferente a uma accusação que sobre ella pesa e pintada a triste situação em que ella se acha com as cores as mais carregadas, leal e impassivel a acceita, sem entretanto, se julgar criminosa porque, diz ella, ‘eu não bati, mandei bater’”.
Entrando nos detalhes do caso, o Dr. Cincinato explora eventuais motivos que a tenham levado ao açoitamento das escravas. Consegue arrancar de sua examinanda que “as pretas eram perversas (…) não gosto desta gente. Alem disso, esta preta é tambem atrevida, senta-se nas cadeiras, bebe agua nos copos como se fosse branca”. Diante dos fatos, sintetiza o perito a sua observação com as seguintes palavras: educação viciada, juízo nulo, delírio nos atos, incoercibilidade, perversões instintivas, perversões afetivas, impulsões inconscientes, alienação mental, aberrações da sensibilidade, desordens de concepção, desordens de percepção, reconhecendo nela um “estado de não valor social”, uma “tributária da psiquiatria”.
Feita a juntada dos laudos, foram os autos conclusos ao juiz para a sentença. O magistrado acatou as perícias não contestadas, afastou a avaliação da responsabilidade moral quanto ao fato delituoso por escapar de sua competência e, ao final, decretou a interdição pleiteada por José Joaquim Magalhães, a quem nomeou a curadoria. Isto em 20 de maio de 1886.
No dia 23 de outubro do mesmo ano, ao meio-dia, a “torturadora de menores de Botafogo” começou a ser julgada. Em vez da sala do Tribunal do Júri, fora deferida, a pedido de seu próprio presidente ao ministro da Justiça, a sala de sessões da Câmara Municipal.
Em prol de D. Francisca, basicamente três argumentos. Primeiramente, o de que tal acusação só existia por pressão dos abolicionistas já que estes imputaram os delitos a D. Francisca porque ela teria se negado a ceder à extorsão de 20 contos que Patrocínio, Clapp e Nabuco lhe teriam feito. Em segundo lugar, a negativa de autoria, alegando que Eduarda e Joanna é que teriam provocado as lesões entre si. Por fim, sob o pretexto do distúrbio mental, tentava-se alcançar, inicialmente, a) a paralisação do processo; ou b) a absolvição pelo júri em decorrência de sua irresponsabilidade criminal.
Às 5h12, o conselho de sentença se reuniu na sala secreta para o veredicto. Logo ao primeiro quesito, os jurados responderam “não” em consenso. Esta negativa de que D. Francisca não produziu, nem mandou produzir, as ofensas em Joanna e Eduarda tornou os demais quesitos, 48 no total, prejudicados. A sentença, a seguir, encerra o caso: “de conformidade com a decisão do jury, foi a accusada absolvida por unanimidade de votos”. Os jornais não pouparam páginas para relatar detalhes do julgamento. O grande acontecimento de fins de outubro de 1886 terminaria com essa decisão, de certa forma esperada: D. Francisca foi absolvida por negativa de autoria.
O que parece ser mais interessante nesse debate é o reflexo de toda uma conjuntura histórica na qual se presenciam as diversas opiniões sobre papel não só dos médicos e juristas, mas também dos agentes sociais incorporados na figura do réu do processo penal, neste caso na pele de D. Francisca. As avaliações da conduta violenta da ré, tanto pelos advogados, promotores, jurados, quanto pelos peritos, ao rebuscarem os detalhes do comportamento social e da vida pregressa, são avaliações tomadas a partir da premissa de “verdade científica” construída pelo saber psiquiátrico e das percepções sociais de feminilidade, de acordo com o estado econômico, civil e político da acusada.
Com efeito, não se divergiu sobre o fato de D. Francisca não se preocupar com seus filhos e com seu marido ou sobre o fato dela gastar exageradamente para satisfazer sua vaidade, pontos destacados até pelos peritos da defesa. Isso, por si só, configurava fator de repreensão social ou indicador de uma personalidade desajustada, que receberia interpretações divergentes sobre o que fazer com essa mulher que ou era louca ou era má. Qualquer que fosse a qualificação atribuída, na avaliação dos atores do processo (médicos e juristas atuantes no caso), diante dos jurados se achava uma pessoa com personalidade no mínimo duvidosa, que, por seus ovários, possuía grande inclinação a mentiras. Outrossim, seu perfil de mãe e de esposa não denotava o zelo que se esperava de alguém em sua posição e estrato sociais: “em qualquer discussão do réu, seja legal, médica ou jornalística, a ênfase era colocada no sucesso ou fracasso da mulher ou homem em representar determinados papéis sociais preestabelecidos”.
Nesse sentido, retratava-se alguém merecedora de uma intervenção oficial, fosse através do sistema punitivo (como desejava a acusação), fosse através do sistema de saúde (como desejava a defesa). As questões de gênero saltavam aos olhos, não só na associação ovário-mentira, mas nos consensos tácitos sobre um certo desajuste social da ré pela não conformidade com os estereótipos. Mais relevante do que sua absolvição pela má sorte do sucedido com as “outras” era sua condenação pela ousadia ou desequilíbrio de não se moldar ao recato e à disciplina privados. Este era o quadro pintado no polo do banco dos réus.
Um detalhe importante, contudo, nos faz mudar o foco para as vítimas: o fato do conselho de sentença ter acatado o argumento de que não foi D. Francisca quem bateu nas escravas autoriza presumir que, sob a interpretação fática de lesões provocadas por Eduarda e Joanna entre si, estava o menosprezo acentuado pelo gênero racializado. Se, diante dos jurados, se apresentou uma mulher de personalidade duvidosa – conforme o padrão moralista-patriarcal e o elitismo econômico –, também diante deles estava uma senhora de escravos. Se seu papel de mãe e de esposa não era exemplar, em nada se resvalava no papel de proprietária de súditos negros, conforme pensava a tradição escravocrata. O julgamento pelo júri, refletindo uma percepção social da época, ilustra a preponderância da mulher branca e rica sobre a não branca pobre.
Na realidade, o juízo recaiu mesmo sobre as vítimas. Não sobre seus supostos atos, mas sobre o ser estigmatizado étnica e racialmente. Apesar da polarização agressor-ofendida ser aqui representada por mulheres e de ser a ré repreensível por fugir aos papéis de gênero, o desequilíbrio de classe e raça pesou a seu favor. Tal fato nos remete à problematização mais recente sobre uma visão homogeneizada de mulher, de uma história e de demandas universalizantes, que os feminismos de base europeia e norte-americana (ou do “Norte” ocidental) das ditas primeira e segunda ondas assumiram. Como denunciado pelos movimentos do final do século passado, as teorias feministas anglo-saxãs hegemônicas narravam as experiências de mulheres de classe média alta branca, esquecendo-se das diferentes dimensões de opressão experienciadas no Terceiro Mundo e, dentro deste, das múltiplas relações dominação-submissão entre os seres viventes.
A abordagem decolonial, como catalisadora de estudos e de ativismos micropolíticos imbricados com o nível macro, transparece os diversos graus de vulnerabilidade social e histórica das mulheres do Sul, das indígenas, das negras, das trans, das lésbicas, das migrantes, acompanhando um necessário fluxo de perspectiva crítica e interseccional. Definitivamente, muito embora a noção de classe se faça necessária para perceber a estruturação social em nosso país, a ideia de raça/etnia e de gênero, concebida e utilizada desde os primórdios da colonização, torna a dinâmica de dominação ainda mais complexa.
Assim é que devemos encarar o 8 de março, como um dia de luta internacional, contudo com as lupas amplificadoras da história brasileira e latino-americana das opressões entrelaçadas.
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