Há poucas semanas, no dia 1º de setembro, o IBGE divulgou os resultados das Contas Nacionais, apontando que nos últimos seis meses desse ano, o produto interno bruto nacional cresceu 3,7% em relação ao mesmo período de 2022. Esse resultado superou as expectativas de boa parte da comunidade política, acadêmica e de analistas de mercado, levando jornalistas econômicos a se perguntarem “o que está acontecendo no país que ninguém conseguiu ver?”. Afinal, como entender os bons resultados da economia brasileira frente a taxas de juros ainda tão elevadas, a um ambiente internacional de baixo crescimento e um contexto político com início tão conturbado no país?

Curioso – mas previsível – alguns analistas com muito espaço na mídia se apressaram em atribuir às reformas do Governo Temer (?!) e ao boom de commodities (?!) a explicação desse crescimento. Hipóteses e colunas mais consistentes vão requerer, contudo, que essa comunidade se aproprie da vasta bibliografia que se produziu no período de 10 a 15 anos atrás, nas universidades e nos organismos internacionais acerca do papel dinamizador dos investimentos em políticas sociais nos governos Lula-Dilma na economia brasileira. Pois parte da explicação da recuperação econômica recente do país está associada à retomada do conjunto de programas sociais a partir de janeiro deste ano, depois de anos de contenção, desfinanciamento e desmonte por que essas iniciativas passaram nos governos Temer-Bolsonaro.

“Colocar o pobre no orçamento público”, como diz o presidente Lula, já fez, está fazendo e ainda vai fazer muita diferença para a economia brasileira, em um país com níveis tão elevados de desigualdade, de pobreza e de rendimentos do trabalho tão baixos. Trazer argumentos para defender a validade teórica e factual dessa tese pode ajudar a desinterditar esse debate e contribuir para uma visão mais atualizada sobre a importância das políticas públicas no mundo contemporâneo, inclusive, para o próprio desenvolvimento.

Crescimento econômico e promoção do bem-estar social são dois objetivos recorrentemente citados como conflitantes na pesquisa acadêmica e na formulação de estratégias de desenvolvimento dos países. Na realidade, esse é um dilema clássico na Economia, Administração Pública e outras Ciências Sociais que, direta ou indiretamente, tratam do papel do Estado, Mercado e Sociedade e suas recíprocas inter-relações. E, como sói acontecer nos debates clássicos, há sempre evidências, modelos e teorias a corroborar uma ou outra posição.

Lá fora e no Brasil, o mainstream do pensamento econômico é claramente partidário da tese de que há um trade-off crítico entre crescimento e redistribuição, e que uma escolha por ampliação do gasto público em políticas sociais implicaria negativamente sobre o crescimento econômico. Afinal “toda e qualquer iniciativa de redistribuição de renda dos indivíduos mais produtivos para os menos produtivos implicará um ajuste para baixo do esforço produtivo agregado; os menos produtivos não terão estímulos para se tornarem mais produtivos… [e] os mais produtivos perderão estímulo para o esforço adicional, já que a renda adicional não será retida” [Kerstenetsky, 2012].

Há, contudo, muitas evidências que refutam essa premissa e a suposta inexorabilidade da determinação do crescimento econômico na possibilidade de garantir a redistribuição do bem-estar social. Além de experiências históricas nesse sentido, haveria, inclusive, modelos teóricos “bem-estar desenvolvimentistas”, em que políticas sociais redistributivistas e políticas econômicas de crescimento do produto não seriam antagônicas, mas compatíveis e mutuamente reforçantes. A experiência de desenvolvimento dos países nórdicos – com crescimento econômico e construção de um sistema de proteção social abrangente ao longo dos anos 1930 aos anos 1970 seria o exemplo contrafactual mais conhecido e robusto. A professora Célia Kerstenestky relaciona também as experiências da Coreia e Brasil, nos contextos de regimes autoritários dos anos 1970, como casos de países que políticas sociais foram funcionais aos seus projetos de desenvolvimento. Com promoção de políticas sociais específicas (universalização da educação na Coreia) ou seletivas em escopo e público-alvo (educação superior e seguro social para segmentos da classe média urbana no caso do Brasil), os dois países apresentaram forte crescimento econômico nos anos 1970. Como se sabe, e está fartamente documentado, o dinamismo econômico da Coreia foi mais longevo e exitoso, seja pelas condições histórias e institucionais de partida, como pelo investimento em educação básica e pela estratégia de desenvolvimento orientado para exportação, com adequação de taxas de câmbio, de juros etc[Lima, 2016].

Ao contrário da Coreia, o Brasil vivenciou, desde os anos 1980, forte perda de dinamismo econômico, decorrente de longo processo de desindustrialização. Em linhas gerais, tal processo é caracterizado de perda de participação relativa da Indústria de Transformação no Emprego Total e Produto Interno Bruto, algo que se verificou desde a década de 1980 no país[ Oreiro e Feijó, 2010]. O fato é que a tendência se manteve nas décadas seguintes, com curto interregno no começo dos anos 2000, quando o valor adicionado da Indústria teria crescido mais rapidamente que a média do produto nacional[Silva, 2017]. O emprego industrial, que já representou quase 25% do emprego total nos anos 1980, veio perdendo participação ao longo do período, chegando a cerca de 17%  em 2012. Mesmo crescendo em valores absolutos, do final dos anos 1990 até 2008, a força de trabalho na indústria expandiu-se a um ritmo menor que o de outros setores.

Mas teria o ritmo da desindustrialização sido arrefecido pelos efeitos das políticas sociais, particularmente entre 2003 e 2014? Ou, de forma mais ampla, seria possível especular que a forte expansão da escala e escopo das políticas sociais nesse período teria tido um efeito econômico significativo, marcando essa experiência histórica como mais uma evidência da relação sinérgica entre gastos sociais e desenvolvimento? Se tal relação é constatável, não se poderia esperar que a retomada dos programas sociais a partir de 2023 venha a ter impactos na geração direta e indireta de empregos e outros efeitos dinamizadores na economia brasileira?

A experiência histórica factual entre 2003 e 2014 parece corroborar que o investimento em políticas sociais atenuou as tendências de desindustrialização, refreando a velocidade do processo, preservando empregos em alguns segmentos da indústria nacional e mesmo gerando outros pelo território nacional. As decisões no campo econômico de criar condições para desenvolvimento do mercado interno – por meio de investimentos públicos, consumo, criação de emprego e aumento real do salário mínimo – e, no campo das políticas sociais, a determinação de fortalecer políticas estruturantes e de natureza universal, combinados com ações com foco equitativo, redistributivo e afirmativo, voltado a segmentos historicamente vulneráveis figuram, certamente, como os vetores mais importantes no esforço do combate à fome e de desenvolvimento social[CEPAL, 2015].

O aporte comparativamente mais elevado de recursos públicos em políticas sociais teria se materializado por meio de uma ampliação do escopo e cobertura das mesmas no país[Campello, 2014]. Ao longo dos anos 1990 até 2014 e, em particular, nos “doze anos gloriosos” deste período, de 2003 a 2014, aportaram-se recursos orçamentários crescentes em políticas sociais no país. De um lado, as políticas de natureza universal – na educação, saúde, trabalho, assistência social – foram fortalecidas, aumentando seu alcance e presença na população brasileira. De outro, foram criados ou ampliados programas e ações com o propósito de promover a inclusão social da população mais pobre e vulnerável, como os programas de transferência de renda, de fomento ao agricultor familiar, de garantia à segurança alimentar, de promoção de diretos sociais[Jannuzzi, 2021].

A expansão de escopo e escala de políticas sociais provocou efeitos significativos sobre a economia brasileira. Afinal, os aportes crescentes de recursos em políticas distributivas e redistributivas disponibilizaram recursos para Consumo das Famílias, Gastos do Governo com compra de bens e serviços e envolveram investimentos para a construção de moradias populares e equipamentos públicos – escolas, postos de saúde, centros de assistência social, praças esportivas etc. –, duplicação e recapeamento de rodovias, obras de saneamento e pavimentação urbana, com repercussões sobre os segmentos da economia[Carvalho, 2018]. Juntamente com políticas educacionais, investimentos em CT&I e qualificação profissional, ampliou-se potencialmente a produtividade de segmentos específicos da economia.

A ampliação do escopo e cobertura das políticas sociais repercutiu diretamente no emprego da Construção Civil, devido ao investimento público para construção de equipamentos sociais, e indiretamente no emprego no Comércio, pelos efeitos multiplicadores da renda transferida por um volume crescente de beneficiários das transferências da Previdência Social e do Programa Bolsa Família. Esse conjunto de políticas levou à forte ampliação de oportunidades de oferta educacional e de ocupações técnicas e de nível superior, refletindo-se em mobilidade sócio-ocupacional em todo o território[Jannuzzi, 2022]. O programa Universidade Para Todos, a criação dos Institutos Federais pelo interior do país e a expansão das vagas nas universidades públicas permitiu a formação de profissionais que vieram a ser contratados para atender as demandas das prefeituras e estados de professores da Educação Básica e Infantil, merendeiras e nutricionistas, enfermeiros, auxiliares de enfermagem, médicos e outros profissionais da Saúde, assistentes sociais, psicólogos e advogados nos Serviços Socioassistenciais. O efeito no mercado de trabalho foi, de fato, muito intenso: de 2003 a 2014, foram criados e/ou formalizados mais de 20 milhões de empregos segundo os registros do Ministério do Trabalho, cifra muito superior aos 8 milhões de empregos que se registrou em 17 anos, entre 1985 e 2002.

Esses impactos das políticas sociais na economia brasileira podem ser captados de forma integrada pelos multiplicadores estimados do gasto em alguns setores de políticas[Castro, 2013]. Na experiência histórica dos anos 2000, estima-se que os investimentos em Educação e Saúde tiveram um impacto marginal de 1,85 e 1,7 vezes no PIB, respectivamente, para cada real aportado, superiores inclusive aos efeitos da alocação na Construção Civil e Exportações. Construção de escolas, centros de saúde, compra de materiais, contratação intensiva de profissionais para operá-los explicam tal efeito. Pelo volume de pessoas beneficiárias e montantes destinados por políticas de transferência de renda – como Bolsa Família, BPC e Previdência – os efeitos multiplicadores estimados sobre a economia também foram significativos – de 1,4 no Bolsa Família, por exemplo.

Nunca é tarde para lembrar que muito mais relevantes que os efeitos econômicos, o investimento em políticas sociais se legitima pela finalidade intrínseca a que se destinam: a promoção do bem-estar e da dignidade humana. O Contrato Social precede o interesse econômico do mercado. Essa é a experiência histórica dos países desenvolvidos que seguiram a trilha civilizatória do Estado de Bem-Estar nos últimos 120 anos.

Referências:
KERSTENETSKY.C.L. O Estado do Bem-Estar Social na idade da razão. Rio de Janeiro, Campus, 2012, p.38.
LIMA, U. M.. (2017). O debate sobre o processo de desenvolvimento econômico da Coreia do Sul: uma linha alternativa de interpretação. Economia E Sociedade, 26(Econ. soc., 2017 26(3)), 585–631.
OREIRO,J.L.; FEIJÓ,C. Desindustrialização: conceito, causas,  efeitos e o caso brasileiro. Revista de Economia Politica, 30(2):219-232, 2010. [4] SILVA, L.N.F et al . O fenômeno da desindustrialização do Brasil e Argentina: uma análise comparada. Revista Iniciativa Econômica, 3 (2): 18-45, 2017.
CEPAL.  Desarrolo Social Inclusivo. Santiago, 2015.
CAMPELLO, T. et al. Brasil sem Miséria. Brasilia: MDS, 2014.
JANNUZZI,P.M. Economia Política e Avaliação em Políticas Públicas no Brasil pós-2014. Cadernos de Saúde Coletiva(UFRJ), v. 29, p. 103-114, 2021. CARVALHO,L. Valsa Brasileira: do boom ao caos econômico. São Paulo: Todavia, 2018.
JANNUZZI,P.M. Mobilidade social no Brasil: da ascensão ao descenso socio-ocupacional nos últimos 5 anos. Nexo Políticas Públicas, p.1-6, 2022.
CASTRO, J. A. Política social, distribuição de renda e crescimento econômico. FONSECA, A.; FAGNANI, E. (orgs) Políticas sociais, desenvolvimento e cidadania . São Paulo. Ed: Fundação Perseu Abramo, 2013, p.167-198.
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli  Revisão: Celia Bartone
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