Tenho criticado sistematicamente neste espaço as práxis econômicas neoliberais vigentes em boa parte do mundo nos últimos 30 a 40 anos, posto entendê-las insustentáveis do ponto de vista científico e danosas quer para a economia de “per se”, em especial no que trata da geração de emprego e renda, quer para as demais faces da vida societária. Todavia, no artigo anterior a essas práxis apenas me referi de modo a mostrar que a tragédia socioeconômica que elas ensejam em nosso país, notadamente a partir das gestões Temer/Meirelles e Bolsonaro/Guedes, se faria presente enquanto ambiência nas eleições municipais do corrente ano.
De outra forma: que por maiores que sejam as mentiras propagadas nas redes sociais a verdade começaria a se impor e alcançaria expressivamente os aliados de ontem e de hoje do governo federal, dada a apontada e triste realidade brasileira; a saber: a do baixo crescimento econômico; a do expressivo e a cada dia maior desemprego; a da destruição de postos de trabalho, principalmente dos formalizados; a da pronunciada retirada de direitos sociais e trabalhistas; a da destruição do meio ambiente; a da monumental crise sanitária; a da larga demonstração de insensibilidade social e de despreparo (e.g., falta de acúmulo reflexivo combinada com incompetência técnica) diante dos agudos problemas nacionais, sejam eles os histórico-estruturais sejam os conjunturais; etc.
Nesses termos, derivava do artigo em tela um dado otimismo esperançoso (vide Eleições Municipais de 2020 também publicado no Terapia Política/11.11.2020). Tal otimismo foi reforçado quando as pesquisas de intenção de voto foram divulgadas anunciando a significativa derrota das forças políticas regressivas empoderadas em 2018 – e, por conseguinte, enquanto subtexto, que o jogo político tendia a voltar a ser disputado em moldes mais civilizados. Na noite de 15.11.2020 os resultados apurados confirmaram, felizmente, o que ‘antevimos’ no artigo supramencionado e as referidas pesquisas sinalizaram. Adição: com o passar dos dias também tivemos clareza que as esquerdas lograram obter alguma recuperação face às eleições de 2018, principalmente nos médios e grandes centros urbanos nacionais como muito bem demonstrado por José Luís Fevereiro no artigo “O que mostra o primeiro turno das eleições municipais”.
O papel do otimismo moderado
Porém, como escrevi no mesmo artigo, o aludido otimismo não poderia ser senão moderado. Isso porque bem sabemos dos limites impostos pelos ‘atavismos’ históricos que conformaram ao longo do tempo a sociedade brasileira, como o são, dentre outros, o secular mandonismo, patrimonialismo e a igualmente secular subserviência externa da turma do ‘andar de cima’ e, imbricadamente, pela insuficiente consciência cidadã da maioria da nossa população.
Tal otimismo esperançoso e ao mesmo tempo moderado mais se justifica quando consideramos que apesar da derrota das aludidas forças políticas regressivas, dada à resiliência histórico-estrutural do que veio de ser assinalado, não sairão de cena tão cedo: a insensibilidade social com as reais necessidades da população; o entreguismo das riquezas nacionais; a manipulação farsesca e demagógica dos valores e crenças mais profundos dos brasileiros; os referidos mandonismos e patrimonialismos a eternamente misturar a coisa pública como sendo coisa a ser apropriada de privadamente; a truculência que caracteriza as ‘elites pátrias’ sempre que se veem ameaçadas em suas dominâncias materiais e político-ideológicas; etc.
E não sairão de cena, ademais, porque as forças políticas de centro-direita, destacadamente o DEM e o PSDB, foram revalidadas nas aludidas eleições de 15.11.2020. Valendo sublinhar nesse ponto que essas agremiações são as operadoras partidárias por excelência do sistema de poder existente no país. Dizendo outro modo: que elas orgânica e historicamente estão habituadas a ‘servir’ aos interesses políticos e econômicos da ‘casa grande. Ainda: que elas não são “outsiders” da política brasileira como as que ascenderam ao poder com o presidente Jair Bolsonaro.
Em sendo assim, como diria em versão livre o saudoso e genial analista do homem e da sociedade brasileiros, Ariano Suassuna, definitivamente não há espaço por essas bandas do planeta para qualquer otimismo ingênuo. Por outro lado, como também assinala esse mesmo autor, por causa, imperioso não incorrer em qualquer pessimismo paralisante. Nesses termos, dados os apontamentos precedentes, dentre tantos e importantes desafios que estão colocados para as forças progressistas, sugiro o exame de um tema pouco valorado, a saber, o que vincula frustração individual e coletiva com aparente insensatez política e alienação ideológica.
Frustação e insensatez política
O professor Belluzzo, outro extraordinário pensador social brasileiro, publicou recentemente brilhante reflexão sobre o primeiro tema que nomeia este item. Não reconstituirei os argumentos por ele exarados porque tal reflexão é facilmente localizável nas redes sociais, bem como soaria caricato fazê-lo na medida em que não possuo nem a pena atilada nem a estilística com as quais o autor nos brinda a cada artigo, ensaio, livro e comunicação oral. Entretanto, sucintamente e a minha maneira, volto a ela, posto entendê-la de suma importância para as lutas políticas nacionais em curso e as que estão por vir.
Dois são os tipos de frustração a considerar: a) a primeira, diz respeito ao fato de muitos brasileiros de baixo poder aquisitivo, logo, pertencentes às capas mais vulneráveis da nossa sociedade, mostrarem-se refratários às criticas acerca da chamada desigualdade social quando elas advêm de pessoas de rendimentos mais elevados. Trivial que ao agirem dessa maneira rejeitam potenciais ou efetivos aliados ao passo que ignoram os que são os grandes responsáveis pelas referidas vulnerabilidades. Ilustrando: ao invés de criticarem quem se beneficia economicamente da regressiva estrutura tributária (onde paga mais quem ganha menos) clamam que os mencionados aliados deveriam viver tal e qual elas – ou seja, na pobreza ou mesmo na miséria. Claro que os poucos muito ‘ricos’ com interesses econômicos no país agradecem penhoradamente esse mar de equívocos e de miopia político-ideológica; e, b) a segunda, em estreita relação com o que vimos de examinar, diz respeito ao fato desses mesmos brasileiros também rejeitarem os intelectuais, professores ou não, e os artistas na medida em que eles constroem seus argumentos e os expressam – em regra – questionando o chamado senso comum e mostrando inconformidade com as várias ‘misérias’ passadas, cotidianas e prospectivas (tudo o mais constante) desses estratos sociais.
Numa frase: a nossa hipótese é que essas pessoas se sentem desvalorizadas quando suas limitações materiais, intelectuais e vivenciais são percebidas e expostas por terceiros de estratos sociais ‘superiores’ em termos de rendimento, educação formal e cultura mais acadêmica. Dado o anotado, mostra-se evidente que a postura que daí deriva consiste em verdadeiro ‘tiro no pé’ ou ‘gol contra’. Isto posto, ouso suspeitar que essa postura funcione enquanto mecanismo de busca de algum equilíbrio emocional cuja premissa consiste na intencional fuga da sua difícil e nada esperançosa realidade. E é exatamente essa frustração, eivada de suscetibilidades feridas, que precisa urgente e politicamente ser trabalhada na medida em que ela opera claramente a serviço do conservadorismo.
O problema da alienação
Certamente os sentimentos analisados não existiriam houvesse maior consciência política por parte dos setores populacionais em questão. Ou seja, que nada disso aconteceria houvesse a famosa consciência de classe (trabalhadora). Em perspectiva analítica mais cuidada vale (aqui) ter em conta, em coro com A. Gramsci, a apartação existente entre a determinação estrutural de classe e o posicionamento político na luta/conjuntura política dos apontados setores populacionais examinados. Mais detidamente: enquanto os segmentos populacionais de maior poder aquisitivo e/ou padrão educacional-cultural reconhecem as ‘assimetrias’ existentes de renda, riqueza e poder, e lutam pela superação desse estado de coisas, os outros, os que estão na base da pirâmide social, desconsideram sua determinação estrutural e atuam na conjuntura política ao lado dos do ‘andar de cima’. Não fosse desse modo, é trivial, não teríamos as casas legislativas brasileiras, eleição após eleição, sendo compostas em sua maioria por políticos do campo conservador (prepostos de banqueiros, latifundiários, grandes empresas nacionais e transnacionais, além de picaretas mesmo em busca apenas de enriquecimento material etc.)
Mas nada disso cai do céu ou vem no DNA do pessoal do ‘andar de baixo’ (como, aliás, não vem no de ninguém) Para dar conta desse temário é inescapável considerar o fenômeno da alienação em sua interação com o modo de organização social capitalista. Para tal, quatro aspectos merecem ser destacados: (i) o primeiro, é que a ideologia ou as formas de ver o mundo, as pessoas e as relações nas quais estamos todos inseridos ‘nasce’ das estruturas materiais da própria sociedade do capital; (ii) o segundo, é que essa ideologia, a ideologia hegemônica, não pode ser senão a que interessa aos interesses econômicos prevalentes. De outro modo: desde sempre os ‘de baixo’ são ‘adestrados’ a ver as coisas do mundo tal e qual os ‘de cima’ e, por conseguinte, a não questionarem a ordem estabelecida; (iii) o terceiro aspecto, é que o modo de funcionamento desse sistema/engrenagem social facilita essa visão (distorcida), como imagens em espelhos, posto ser o capitalismo a única sociedade inventada na história, por homens e mulheres, na qual a essência das coisas não revela a olho nu a sua essência (volta a esse ponto em seguida); e, (iv) o quarto, é que nessa sociedade operam incessantemente os chamados aparelhos ideológicos reiterando os apontados valores/ideologia. Ou seja: há nela uma gama de instituições, desde as familiares e de ensino, passando pelas igrejas/religiões, até as grandes mídias, todas elas em maior ou menor grau operando a serviço da reprodução do sistema em análise.
Não é à toa que o trabalhador não percebe o salário pago pelo patrão como parte ‘a menor’ do produto total que ele lhe entregou ao fim da sua jornada de trabalho. É dessa mesma maneira que ele tende a acreditar que os bens e serviços chegam ao mercado sem preço, como se eles fossem de fato definidos no mercado, deixando assim de enxergar o poder de marcar preço das grandes empresas e, reversamente, a sua notável incapacidade de determinar o preço (salário) da única mercadoria que lhes resta para vender, a sua força ou capacidade de trabalho, etc.
Enfim: as referidas subjetividades nascem das relações materiais capitalistas e através de mecanismos endógenos e externamente criados (as anotadas instituições) se reproduzem como se fossem coisas naturais e antediluvianas. Nesses termos, vale lembrar o filósofo francês L. Althusser quando ele dizia que a reprodução capitalista consiste na reprodução tanto dos lugares de trabalho e dos agentes polares do capitalismo enquanto tal (leia-se: capitalistas e trabalhadores), mas também das formas de ver o mundo e das relações sociais nas quais estamos todos enfiados. Nesses termos, as subjetividades antes apontadas ganham novas possibilidades, a das suas objetivações!
Desalienar é preciso
Apesar da potente engrenagem de reprodução do anotado “status quo”, aqui e alhures, importante não perder de vista que o intento de tornar realidade dado projeto de desenvolvimento, seja ele qual for, é sempre luta política, como nos ensinou tempos atrás o sociólogo Max Weber; e que lutas políticas, como falava e escrevia o também sociólogo e grande Francisco de Oliveira, são igualmente lutas discursivas. Nesses termos, tendo em vista a busca pela afirmação social de projeto de desenvolvimento socialmente mais justo, nacionalmente independente e espacialmente ‘equilibrado’, entendo que a luta político-discursivo conta agora com um extraordinário instrumento: as novas mídias sociocomunicacionais. Ou seja: não sem contradições e dificuldades, suponho existir no presente momento inaudita possibilidade de difusão de ideias e falas progressistas, e, com isso, reais condições para acelerar o processo de desalienação das maiorias populacionais – e não apenas no Brasil.