Tempos Terríveis: Em Gaza, Israel se precipita no abismo moral
Passamos por um trauma assustador perpetrado por seres humanos que perderam a sua humanidade, e agora bombardeamos, assassinamos e matamos pessoas de fome, e endurecemos nossos corações ao ponto da petrificação.
A corrupção moral é um mecanismo que se retroalimenta e se justifica num ciclo que pode se tornar interminável sem uma intervenção decisiva e insistente. Para nós, israelenses o estatuto de refugiados que impusemos a milhões de palestinos durante 75 anos, a ocupação que impusemos a milhões de outros durante 56 anos e o cerco que impusemos aos milhões que vivem em Gaza durante 16 anos corroeram nossos princípios morais. Normalizaram uma situação em que há pessoas que valem menos. Muito menos.
A corrupção muitas vezes avança para as profundezas do abismo a uma velocidade constante com terríveis períodos de aceleração, mas também há momentos esperançosos de desaceleração… até o Sábado Negro do 7 de outubro. A crueldade incompreensível a que fomos expostos calou fundo na nossa alma e demonstra até que ponto a ocupação e o cerco corrompem tanto os ocupados como os ocupantes. E, como a energia nuclear, levou-nos numa espiral ao inferno moral.
Não mais que uns poucos dias foram suficientes para que uma matança desenfreada e sistemática de civis – crianças, mulheres, idosos e homens – pelas mãos de membros de uma organização (Hamas) que perdeu qualquer resquício de humanidade para eliminar algumas das barreiras que ainda parecíamos ter.
Criamos uma sociedade em que as pessoas do outro lado da fronteira foram despojadas da sua humanidade. Israel, atualmente, é um país e uma sociedade onde os chamamentos para eliminar Gaza não são feitos apenas por pessoas patéticas e marginais que deixam comentários nas redes sociais. É um país onde os legisladores do partido no poder apelam aberta e descaradamente por uma “segunda Nakba”, no qual o ministro da Defesa ordena que se negue água, comida e combustível a milhões de civis, um país cujo presidente, Isaac Herzog, o rosto moderado de Israel diz que todos os habitantes de Gaza são responsáveis pelos crimes do Hamas – se eu mesmo não tivesse visto isso, não teria acreditado.
Em Gaza, com os seus 2,3 milhões de habitantes, mais de metade dos quais crianças, vivendo sob um governo que combina a ditadura totalitária com o fundamentalismo religioso, nosso presidente não conseguiu encontrar um único habitante – homem, mulher ou criança – que não fosse responsável. Menos mal que nenhum canal de notícias tenha encomendado uma sondagem para averiguar a percentagem da comunidade judaica que apoia a limpeza étnica em Gaza. E talvez não apenas em Gaza; por que parar aí? Quando os líderes políticos e militares perdem toda a contenção e endossam ideias para desferir um golpe brutal contra a população civil, estamos parindo uma sociedade na qual se completou o processo de despojamento de sua humanidade das pessoas que vivem do outro lado da fronteira.
E quando isso ocorre, o inferno está muito próximo. No dia 8 de Outubro, demos um salto de gigante na nossa campanha de corrupção moral e agora estamos perigosamente perto do buraco negro. Não é de admirar que haja milhares de mortos em Gaza – milhares! – e que as vozes que se perguntem se fizemos o suficiente para evitar que inocentes sejam feridos mal sejam ouvidas no debate público israelense. E isso não é tudo. Nenhuma corrupção moral social é dirigida exclusivamente para o exterior. Há sempre um inimigo interno: o mesmo inimigo ao qual o comissário da polícia declarou guerra na semana passada, quando ordenou aos seus subordinados que usassem a força para impedir protestos contra a guerra em Gaza e contra os danos causados a pessoas inocentes. E propôs que os manifestantes fossem deportados para Gaza.
É provável que expressar pesar pela morte de crianças na Faixa (já são mais de 1.700) [mais de 2.000 em 24 de outubro] não apenas lhe garantirá uma vaga num dos ônibus do comissário de polícia. Também fará com que você seja suspenso do trabalho ou da escola, como aconteceu com dezenas de pessoas nas últimas duas semanas. E esse não é o pior cenário, porque a compaixão pelas crianças de Gaza também pode terminar numa tentativa de linchamento por uma turba fascista, como aconteceu com o jornalista Israel Frey. (Confissão: tenho orgulho de dizer que ele é meu amigo) Resumindo: como definimos o regime de um país que trata desta forma os seus críticos? Eu sei como não defini-lo.
Não muito longe de nós, no seu próprio caminho em direção ao buraco negro, agitam-se aqueles que se autodenominam membros da “esquerda progressista”. Eles estão tendo dificuldades em condenar sem hesitação – e sem fugir do “contexto” – uma orgia satânica de destruição das comunidades civis israelenses perto de Gaza, juntamente com os seus residentes. Alguns inclusive balbuciam algo sobre a descolonização ser um processo feio… foi o que aconteceu na Argélia e no Quênia, por exemplo. Leio isso e morro de vergonha. Talvez não se tenha compreendido, mas a luta para acabar com a ocupação e alcançar a independência do povo palestino faz parte da luta universal para defender os direitos humanos de todos, e não o contrário. A ideia da santidade da vida humana, a nobre ideia de que toda pessoa tem direitos básicos que não devem ser desprezados, não é uma ferramenta para implementar a independência palestina, muito pelo contrário. A liberdade e a autodeterminação palestinas estão desenhadas para avançar rumo a uma realidade em que as pessoas desfrutem da proteção dos seus direitos e sejam livres para conduzir as suas vidas como desejarem. Aqueles que estão confusos sobre esta questão não são humanistas. Aqueles que estão confusos sobre esta questão não expressam uma tese moral complexa e profunda, estão simplesmente se entregando ao apoio ao terror.
Ser humano é um trabalho árduo. Seguir sendo humano diante da crueldade desumana é muito mais difícil. Apesar do que muitas vezes pensamos, o humanismo não é uma característica humana natural. É muito mais natural o desejo de vingança, de culpar todos que estão do outro lado, de lançar milhares de bombas sobre eles, de varrê-los da face da Terra. A história da humanidade está repleta de exemplos e aparentemente não aprendemos nada.
Estes são tempos terríveis. Vivemos um trauma horrível perpetrado por seres humanos que perderam a sua humanidade, e agora bombardeamos, assassinamos e matamos pessoas de fome e, acima de tudo, endurecemos os nossos corações até à petrificação. A corrupção moral não é menos perigosa para a nossa sobrevivência do que o Hamas. (Original publicado no Haaretz e republicado pela revista Ctxt traduzido para o espanhol por Paloma Farré em 24/10/2023)
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Tradução para o português: Halley Margon e Revisão: Celia Bartone
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