Enquanto os EUA está perdendo a capacidade de atração, a China projeta a imagem de articuladora de consensos.
Tianjin e o simbolismo de 1945
No início de setembro de 2025, em Tianjin, China, líderes e especialistas de todo o mundo se reuniram sob a bandeira da Organização de Cooperação de Xangai Plus (OCS+). O evento coincidiu com as comemorações do 80º aniversário da vitória sobre o fascismo — uma data que ressoa profundamente no imaginário chinês e internacional. Mais do que memória histórica, a ocasião serviu de palco para uma proposta ambiciosa: o presidente Xi Jinping apresentou a Iniciativa de Governança Global (GGI), destinada a oferecer princípios e diretrizes para enfrentar as crises acumuladas do século XXI.
Xi foi direto: soberania igualitária, respeito ao direito internacional, prática do multilateralismo, centralidade das pessoas e ações concretas. Cinco princípios que pretendem recuperar a confiança na cooperação internacional em um momento em que esta se encontra corroída por guerras, protecionismo e unilateralismos. A plateia, formada não apenas por membros da OCS, mas também por parceiros e observadores de várias partes do mundo, entendeu a mensagem: havia ali a afirmação de um projeto de governança que contrasta frontalmente com a política de Donald Trump em Washington.
Repercussões internacionais
As repercussões foram imediatas e diversificadas e vieram de todos os continentes. Análises foram reunidas em reportagem do ChinaDaily (edição de 5 de setembro), que ouviu especialistas de diferentes continentes sobre a relevância da proposta chinesa.
Jack Perry, presidente do The 48 Group em Londres, lembrou que, em um mundo abalado por sanções e tarifas protecionistas, a comunidade empresarial carece de mecanismos de estabilidade. Para ele, a proposta chinesa “chega no momento certo, oferecendo sabedoria e soluções para aprimorar a governança global”.
Do Oriente Médio, Najla Alzarooni, pesquisadora da Universidade de Sharjah, destacou a sintonia da GGI com o “espírito de Xangai”: soberania, não interferência e desenvolvimento conjunto.
Na África, Onyango K’Onyango, consultor no Quênia, interpretou a iniciativa como “renovada esperança num mundo em crise sem precedentes”. Para ele, a ênfase na igualdade soberana e no multilateralismo sinaliza uma política externa comprometida com o benefício da humanidade, contraposta à lógica da hegemonia.
Do Sul da Ásia, Mehmood Ul Hassan Khan, diretor de centro de estudos em Lahore, descreveu o discurso de Xi como “histórico e futurista”, ressaltando que a GGI fortalece o papel dos países em desenvolvimento e consolida uma ordem baseada em justiça.
Já na América Latina, Jorge Heine, ex-ministro chileno, destacou que a reunião em Tianjin refletiu “a ascensão do Sul Global e a centralidade da Eurásia na política mundial”. Seu diagnóstico é claro: em contraste com o unilateralismo ocidental, o encontro recolocou a cooperação internacional no centro da agenda.
O incômodo de Trump
Enquanto especialistas e autoridades de diferentes continentes repercutiam positivamente a iniciativa chinesa, em Washington o clima foi de inquietação. O presidente Donald Trump, já mergulhado em sua cruzada tarifária contra Índia, Brasil, União Europeia e dezenas de outros países, demonstrou desconforto visível ao ver China, Índia, Rússia e Coreia do Norte compartilhando o mesmo palco em Tianjin.
A cena soava como provocação: quatro países frequentemente demonizados no discurso norte-americano, mas que, juntos, sinalizavam a formação de um novo eixo de cooperação política e econômica. Trump recorreu às suas redes sociais para ironizar a reunião, acusando-a de “teatro autoritário”. Em sua rede social Truth Social, escreveu: “Parece que perdemos a Índia e a Rússia para a China mais profunda e sombria. Que tenham um longo e próspero futuro juntos!”. Seu gesto revelou mais fragilidade do que força.
Ao mesmo tempo em que aplica múltiplas tarifas e sanções, os EUA veem seu prestígio multilateral esvaziar-se. A incapacidade de apresentar uma agenda positiva para a governança global expõe um vácuo que a China e seus parceiros procuram preencher.
Um mundo em busca de alternativas
A leitura dos especialistas converge: há um cansaço crescente com a ordem internacional dominada pelo Ocidente desde 1945.
Joseph Nye, cientista político norte-americano, professor emérito da Harvard Kennedy School, conhecido como um dos mais influentes teóricos das relações internacionais contemporâneas, já alertava que a hegemonia não se sustenta apenas na força militar, mas na capacidade de atrair e persuadir.
O conceito central de sua obra, a ideia de “poder brando” (soft power), definido como a capacidade de um país influenciar outros por meio de valores, cultura e instituições, em contraste com o poder militar ou econômico (“hard power”) se aplica a esse momento
É justamente essa capacidade de atração que os EUA estão perdendo, enquanto a China projeta a imagem de articuladora de consensos.
Susan Strange (1923-1998), uma das maiores referências e pioneira da economia política internacional, professora na London School of Economics e depois na Universidade de Warwick, costumava dizer que o poder se manifesta não apenas nos tanques e mísseis, mas na capacidade de moldar mercados, normas e ideias. A GGI é, nesse sentido, um esforço chinês de moldar a agenda global em torno de soberania, cooperação e desenvolvimento.
Giovanni Arrighi (1937-2009), grande pensador do sistema global, via a ascensão do Leste Asiático como uma mudança estrutural na economia mundial. O que se desenha em Tianjin não é apenas uma reunião protocolar, mas a confirmação dessa transição hegemônica em direção à Ásia.
E Amartya Sen, renomado economista e filósofo indiano, em suas reflexões sobre liberdade e desenvolvimento, fornece a chave para entender o apelo do discurso chinês: governança global não é apenas sobre geopolítica, mas sobre assegurar condições dignas de vida às populações. É nesse ponto que a GGI procura diferenciar-se, colocando a centralidade das pessoas como princípio explícito.
Entre o passado antifascista e o futuro multipolar
O fato de a GGI ter sido lançada no contexto das comemorações da vitória sobre o fascismo não é mero acaso. A memória de 1945 remete a um momento em que a cooperação internacional se mostrou capaz de derrotar a barbárie. O paralelo com o presente é evidente: em pleno século XXI, ideias autoritárias e excludentes voltam a rondar o mundo.
O desafio é construir uma ordem internacional capaz de neutralizar essas tendências, garantindo soberania, equidade e cooperação. Tianjin representou um passo nessa direção: o Sul Global se afirma não apenas como espaço de resistência, mas como proponente de alternativas.
Se a Organização das Nações Unidas (ONU) nasceu como resposta ao fascismo e à guerra, a GGI pode ser vista como tentativa de resposta às novas crises sistêmicas: guerras comerciais, mudanças climáticas, desigualdade tecnológica e erosão do multilateralismo.
O encontro em Tianjin mostrou com clareza a disputa por narrativas no século XXI. De um lado, os EUA e sua insistência no unilateralismo, tarifas e exclusões. De outro, a China e seus parceiros, propondo soberania igualitária, multilateralismo e cooperação concreta.
Trump incomodou-se com a imagem de China, Índia, Rússia e Coreia do Norte lado a lado. Mas a realidade é que esse incômodo revela a dificuldade norte-americana em aceitar que o mundo caminha para uma multipolaridade inevitável. Mais do que rivalidades de poder, o que Tianjin nos lembra — especialmente ao coincidir com o aniversário da vitória sobre o fascismo — é que o objetivo último da governança global deve ser a paz. Xi Jinping insistiu que o sistema internacional só terá legitimidade se colocar as pessoas no centro e se traduzir em ações concretas que reduzam desigualdades, ampliem a cooperação tecnológica e preservem a segurança coletiva.
Num tempo em que guerras e ameaças militares voltam a ocupar manchetes, a proposta de uma governança orientada por soberania, justiça e cooperação soa quase utópica. Mas, é justamente essa utopia que se torna necessária. Parafraseando Amartya Sen, “desenvolvimento é também liberdade.” E não haverá liberdade sem paz, nem paz sem instituições capazes de proteger os mais vulneráveis.
Tianjin mostrou que o Sul Global não se contenta mais em ser espectador. Ele propõe alternativas, exige voz e oferece caminhos. Cabe agora às potências tradicionais decidir se preferem isolar-se em seus muros tarifários ou participar de um esforço coletivo de reconstrução.
Em última instância, o desafio da governança global não é apenas gerir interesses nacionais. É impedir que a humanidade volte a cair nos abismos que conheceu em 1945.
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli
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