Uma corajosa iniciativa de compor terreno para um acordo entre as forças políticas e sociais do estado para uma aliança entre governos e sociedade civil encontra ouvidos moucos.

Vários prefeitos do Rio Grande do Sul começam a discutir a necessidade de realocar bairros inteiros das suas cidades – em alguns casos cidades inteiras! – visando torná-los menos suscetíveis a enchentes. Depois de três cheias catastróficas em menos de um ano, nada parece mais óbvio. Afinal, grande parte das cidades gaúchas, especialmente na chamada Região dos Vales, surgiu de assentamentos coloniais que remontam há cerca de um século e meio. Suas localizações resultaram de políticas de ocupação do território, de parte dos governos, cuja maior preocupação era a de atestar, de forma mais ou menos ilusória, a presença do Estado, e, de parte dos colonos, de tentativas mais ou menos desesperadas de minorar os efeitos da ausência real desse mesmo Estado. No intuito de facilitar meios de comunicação, o que implicava a possibilidade de escoamento da futura produção econômica, as margens dos rios foram seus locais de predileção.

Em suma, nenhum planejamento, se se considerar como tal alguma coisa além de plantas cartográficas de núcleos coloniais com as famosas glebas unifamiliares de mais ou menos 25 hectares.

Essa sobreposição aleatória de iniciativas resultou na atual malha rural/urbana das regiões serrana e dos vales do RS, com suas características: predomínio de cidades pequenas e médias e de propriedades idem, dando base a um desenvolvimento econômico, inclusive industrial, de invejável perfil social. No entanto, o custo ambiental, acumulado por décadas a fio, começou a mostrar seu peso nos últimos anos e, tudo leva a crer, apresenta agora sua fatura.

Nada mais urgente, portanto, que se reveja o que foi feito até aqui, e que se comece pelo mais simbólico, mais efetivo, ao mesmo tempo mais complexo e, porque não dizer, mais dramático: a localização das cidades.

Mas o problema não se resolverá no âmbito das cidades tomadas isoladamente, como se cada uma fosse responsável pela solução dos seus males. A questão deve ser abordada não só em conjunto, mas como parte de um problema maior, que é a definição de uma política de ocupação do território do estado como um todo, na perspectiva da sua sustentabilidade futura. Os órgãos de Estado, nos planos estadual e nacional, devem estar envolvidos como articuladores essenciais das iniciativas, visando desenhar o novo mapa estratégico da sociedade gaúcha, com vistas ao seu desenvolvimento econômico e social sustentável. Não só cidades, mas atividades econômicas devem ser repensadas em suas dimensões territoriais, para não falarmos no próprio perfil da economia gaúcha, que vem se reprimarizando de forma acelerada, com custos ambientais cada vez mais pesados.

Mas, se uma convergência de iniciativas de todas as esferas de governo seria essencial para mudar o curso dessa história, parece que estamos longe disso. O calendário eleitoral, que poderia ser a grande oportunidade de um concerto entre as forças políticas em disputa – não um concerto que suprimisse as divergências, pois elas são reais e substantivas, mas um concerto que apontasse para acordos de procedimentos fundados no imperativo moral que consiste em considerar o bem-estar e o futuro da sociedade gaúcha como o bem maior – está servindo justamente para o contrário: a exploração, com maior ou menor demagogia, dependendo de quem a verbaliza, das “inconsistências” e “más intenções”, reais ou ilusórias, do “outro lado”. Digamos com todas as letras: do governo federal ao governo municipal de Porto Alegre (os prefeitos do interior de pouca iniciativa são capazes nesse confronto, não por mérito nem por demérito), ninguém demonstra empatia real para com o sofrimento da população. Todos apostam no futuro das suas próprias ambições políticas ou politiqueiras.

Uma corajosa iniciativa de compor um terreno para um acordo entre as forças políticas e sociais do estado para uma aliança entre governos e sociedade civil, através de uma Agência (uma Authority, segundo experiências de sucesso em outros países que igualmente passaram por catástrofes), malgrado o empenho de seus formuladores, encontra ouvidos moucos de parte de quem poderia e deveria tomar a iniciativa de acolhê-la.

Em suma, vamos mal! A próxima enchente vem aí, e as façanhas celebradas por nosso hino parecem cada vez mais condenadas ao passado. (Publicado por Sul 21, em 22/08/2024)

***
Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.

Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
Leia também “A economia da destruição“, de Paulo Kliass.