Nada anda. Chamam de trânsito, mas é a falta dele. Emília sente um aperto no peito. Ansiedade por não saber se chegará a tempo. Falta tempo. Falta dinheiro. Falta paciência. Sobra aporrinhação. Lembrou que esqueceu de passar no cartório. Cartório é como engarrafamento, para o trânsito da vida. Só deixa a vida andar novamente se levar papéis, pagar pelos carimbos e reconhecer a firma. A vida de Emilia está engarrafada.

Se não chegar a tempo, vai dar problema. Tenta não pensar em nada que lhe piore a situação. Se o corpo não pode andar, ao menos que o espírito passeie por algum lugar agradável. Um lugar que se possa transitar e que a vida possa ser vivida com gosto de vida. Um lugar imaginário. Bem diferente dessa realidade tosca em que nada anda. Nada muda. E tudo é ansiedade.

O vendedor de biscoito Globo marcha entre os carros e dribla com desenvoltura as motocicletas que passam rápido buzinando pelo estreito espaço entre os carros parados. Há tempos que é assim. Gente vendendo biscoito Globo em engarrafamento para sobreviver. Sujeito a ser atropelado por um motoboy que arrisca a sua vida para sobreviver de outro jeito.

Nenhum deles caberia no seu mundo imaginário. Lá é lugar de vida. Mas não os deixam viver, só sobreviver. Se tiver para hoje, a vida já está ganha. De dia em dia ganho, perde-se a vida. Vida engarrafada no ciclo da necessidade de se sobreviver do jeito que dá. Do jeito que deixam. Quando deixam. Hoje, não deixam Emília ganhar seu dia. Está tudo parado.

Tem gente que parece que tem a vida movimentada. Gente que não para nos engarrafamentos da vida. Gente cuja tristeza maior que já experimentou na vida foi perder as joias. Levadas por alguém que leva a vida levando para si o que é dos outros, até ser preso. Emília ouviu no rádio do carro a jornalista comparando a tristeza de quem perdeu tudo com a sua tristeza de ter perdido as joias. Cada um entende a tristeza do outro segundo as suas próprias tristezas. Emília já perdeu quem amava, perdeu os sonhos, perdeu a esperança, perde um pouco da vida todo dia.

Tudo parado ainda. Emília não sabe o porquê. Se acidente, incidente ou só as coisas que são assim mesmo, feitas para serem sempre assim. Sempre do mesmo jeito de sempre. Pensou que a pandemia mexeria com a cabeça das pessoas. Que gente que engarrafa a vida dos outros perceberia que a vida é mais do que entristecer gente para viver na ilusão de que se é mais feliz que os outros. Que as bugigangas que se compra na vida não são mais importantes que a vida que não se pode comprar. Mas nada mudou. Nada andou.

Nem com a pandemia e nem com a tragédia do Sul. Gente morta. Gente desaparecida. Cidades inteiras afogadas. Vidas paradas pela incerteza de como será o futuro agora que o passado foi levado pelas águas. E mesmo assim, diante de todo horror, mente-se. A religiosa intolerante diz que a chuva é culpa de quem reza errado, de quem tem religião de gente preta. Outro, aproveita-se da eventual solidariedade para ganhar dinheiro enganado. O liberal da elite se preocupa com o comércio prejudicado pelas doações. E outro diz que o preço da comida deve subir para equilibrar o mercado. Defende a falta de comida para o pobre para que não falte comida para o rico. A tragédia é inédita, mas a gente é a de sempre. A que não muda. Gente que engarrafa a vida dos outros.

Um, dois, dez pipocos. Tiros. Emília conhece bem. Cresceu ouvindo e tremendo quando ouvia. Tremeu novamente. Tudo parado. Não há para onde fugir. O vendedor de biscoitos Globo nem se abala. Continua a oferta de carro em carro. Sabe que não adianta ter medo. Sabe da impotência diante dos tiros, diante de gente que engarrafa a vida. Sabe que só o que há para fazer é seguir a vida engarrafada.

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Ilustração: Mihai Cauli
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