O esvaziamento da política de valorização do salário mínimo no pós-2016

Desde 1° de janeiro de 2021 vigora o novo valor do Salário Mínimo Nacional, R$ 1.100,00. Definido por Medida Provisória n° 1.021, o novo valor corresponde a uma correção de 5,26% no piso mínimo nacional e se baseou na variação estimada do INPC-IBGE para o ano de 2020 (5,22%). Divulgada hoje a variação consolidada de 5,45% do INPC em 2020, conclui-se que a correção aplicada pelo governo Bolsonaro deixou, mais uma vez, de garantir qualquer valorização real do salário mínimo e, pior, impôs uma perda de 0,18% no poder de compra do mínimo nacional.

É a terceira correção do mínimo decidida e aplicada pelo governo de Jair Bolsonaro e a terceira vez que seu governo desconsidera os parâmetros negociados, acordados de forma quadripartite e garantidos pela Lei 12.382/2011, que implementou a Política de Valorização do Salário Mínimo, cuja vigência inicial era prevista até 2023, com revalidações quadrienais.

A política de valorização foi uma política pública proposta por um conjunto unitário de seis Centrais Sindicais, em 2004, e negociada de forma quadripartite – poder público federal e representações sindicais dos empregadores, trabalhadores e aposentados e pensionistas – no âmbito do hoje extinto Ministério do Trabalho, entre 2004 e 2007. A política para o mínimo vigorou entre 2008 e 2019, a despeito do descumprimento de sua legislação durante os governos de Michel Temer (MDB), entre agosto de 2016 e dezembro de 2018, e de Bolsonaro, em 2019. Desde janeiro de 2020 a política de valorização foi descontinuada pelo atual governo sem qualquer debate público.

Enquanto os parâmetros legais da política foram respeitados, entre 2007 e 2016, o salário mínimo registrou uma valorização real (acima da variação da inflação) de 41,37%, o que elevou seu valor de R$ 380,00 para R$ 880,00. No entanto, desde o golpe político-institucional de 2016 a Política de Valorização do Salário Mínimo é objeto de permanente ataque, tanto por seu descumprimento entre 2017-2019, quanto por sua extinção precoce em 2020.

Se a Política de Valorização tivesse sido respeitada e aplicada no período pós-2016, o salário mínimo hoje equivaleria a R$ 1.117,50, ao invés do atual valor (R$ 1.100,00). Isto é, seria mensalmente R$ 17,50 superior ao valor vigente, o que no ano equivaleria a R$ 210,00 (desconsiderado o 13°) a mais no bolso do trabalhador/a.

Nos 28 meses do governo Temer, período em que o mínimo foi corrigido duas vezes, em janeiro de 2017 e 2018, o piso nacional registrou um rebaixamento de seu poder de compra equivalente a 0,43%, quando comparado à variação do INPC. O valor do mínimo passou de R$ 880,00, em dezembro de 2016, para R$ 954,00, em dezembro de 2018, último mês de Temer na presidência.

Nos dois primeiros anos de Bolsonaro à frente do país, o salário mínimo sofreu três correções anuais e registrou uma valorização real de 1,21%, quando comparada ao INPC, passando de R$ 954,00, em dezembro de 2018, para R$ 1.100,00, em janeiro de 2021.

No ano de 2019, após Temer não corrigir o valor do salário mínimo em dezembro de 2018, coube a Bolsonaro definir o percentual de correção do mínimo. Em janeiro de 2019 Bolsonaro reajustou o salário mínimo em 4,61%. Este percentual não só corrigiu as perdas inflacionárias de 2018, como garantiu um aumento real de 1,14% no mínimo a partir de janeiro de 2019, quando comparado ao INPC. No entanto, o que à primeira vista pareceu uma boa notícia para os trabalhadores/as na verdade foi uma derrota. Isto porque, a despeito desse aumento que repôs as perdas registradas no período Temer (equivalentes a 0,43%), ele foi inferior aos parâmetros legais garantidos pela Lei 13.152/2015, que revalidou a vigência da Política de Valorização do Salário Mínimo até 2019 e previa um ganho real de 1,32% do salário mínimo à época, equivalente à variação do PIB nacional de dois anos antes (2017).

Portanto, o aumento real de 1,14% do salário mínimo sancionado por Bolsonaro em janeiro de 2019, apesar de recompor as perdas dos dois anos anteriores, significou uma burla a lei da Política de Valorização do Salário Mínimo. Dessa forma, o reajuste do salário mínimo foi efetivamente 0,61% inferior aos parâmetros legais previstos pela política e o seu valor que deveria ser de R$ 999,78 ficou em R$ 998,00.

Em janeiro de 2020, o governo Bolsonaro, mais uma vez, não valorizou o piso mínimo nacional e reforçou a agenda de austeridade fiscal defendida por sua equipe de ministros e pelo “mercado”. Ainda no primeiro semestre de 2019, o Ministro da Economia Paulo Guedes condicionara qualquer aumento real do salário mínimo à aprovação das reformas fiscais e Hamilton Mourão, o vice-presidente, em reunião na FIESP reforçou a ofensiva contra o mínimo ao criticar qualquer possibilidade de reajuste do piso nacional acima da inflação. Após qualificar o salário mínimo como uma das “vacas sagradas” da república, advertiu que o mesmo deve ser objeto de “ataques”.

Alguns meses depois, em novembro de 2019, Guedes e sua equipe encaminharam uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que propunha a criação de um “estado de emergência fiscal”, o qual, entre outras medidas, propunha o congelamento do salário mínimo por dois anos (até 2021) em casos de “crise”. Essa PEC, que não foi votada até o presente momento, impediria qualquer aumento real do salário mínimo.

Nesse contexto, em janeiro de 2020, o governo reajustou o salário mínimo em 4,11% com base na estimativa do INPC-IBGE para o período, elevando-o de R$ 988,00 para R$ 1.039,00. E, em fevereiro, quando o INPC definitivo foi divulgado acima do projetado, o governo implementou novo reajuste de 0,58%, elevando o salário mínimo para R$ 1.045,00 a partir de 01/02/2020. Esse reajuste que visava recompor o poder de compra do mínimo, desconsiderou o resíduo inflacionário de dezembro de 1,22%, que não foi aplicado para o mês janeiro de 2020.

Dessa forma, o governo Bolsonaro, novamente, produziu uma pequena perda no poder de compra do salário mínimo durante o mês de janeiro. Dessa vez, não mais em descumprimento a Política de Valorização do Salário Mínimo, já extinta sem qualquer debate público, e sim por descompromisso político com os trabalhadores e beneficiários da previdência, os quais têm seus rendimentos referenciados pelo salário mínimo.

Voltando ao presente, a janeiro de 2021, a correção que passou a vigorar nesse ano, mais uma vez, se apoiou na variação já apurada do INPC entre janeiro e novembro de 2020 e na estimativa do índice para dezembro. Divulgado, hoje, a variação consolidada do INPC e sendo esta superior a estimada pelo Governo Federal, as seguintes dúvidas se colocam: o governo Bolsonaro, nesse contexto de recessão provocada pela crise sanitária da Covid-19, implementará uma reposição integral do salário mínimo complementar a já anunciada? E essa correção novamente não será aplicada de forma retroativa a janeiro?

Após esse breve resgate da evolução do poder de compra do salário mínimo no pós-impeachment (2016-2021), percebe-se que o abandono de uma política de valorização e o congelamento do poder de compra do mínimo são a nova regra.

A cartilha da austeridade implementada por Temer (MDB) e Bolsonaro (ex-PSL e hoje sem partido) contra o salário mínimo e sua política de valorização interrompe uma trajetória de recuperação do poder de compra do salário mínimo iniciada ainda em 1995, nos governos de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), e que ganharam forte impulso com a Política de Valorização do Salário Mínimo durante os governos petistas de Lula e Dilma Rousseff. E encerra um período de 19 anos de permanentes ganhos reais no salário mínimo nacional (1998-2016).

Essa agenda política antipopular da coalizão que sustentou o impeachment tem como alvo os cerca de 50 milhões de brasileiros/as – entre beneficiários do INSS, empregados/as, trabalhadores/as por conta-própria, empregadas domésticas e empregadores/as – que, em 2020, tinham sua renda referenciada pelo salário mínimo, segundo o DIEESE. Assim como, os 32,7 milhões de trabalhadores/as informais, que no trimestre móvel encerrado em outubro de 2020, tinham no salário mínimo uma importante referência para suas remunerações.

Não obstante, vale lembrar que o salário mínimo também é uma importante referência para evolução da remuneração daquelas categorias profissionais organizadas, cujos pisos salariais formais e garantidos em Convenções e Acordos Coletivos de Trabalho têm valor pouco superior ao piso nacional e que, por isso, normalmente são reajustados pari passu a correção do mínimo nacional.

No nono país mais desigual do mundo, segundo o Banco Mundial, dotado de um mercado de trabalho historicamente marcado por altas taxas de alta rotatividade, informalidade, empregos de baixa qualificação e baixos salários, é preciso ter consciência de que o salário mínimo legal, regulado desde de 1940, nunca foi o patamar mínimo (o menor) efetivamente praticado em nosso mercado de trabalho. Tampouco operou como o mínimo necessário para garantia da subsistência do trabalhador e de sua família, como sua previsão legal determina. Segundo o DIEESE, o Salário Mínimo Necessário, em dezembro de 2020, deveria ser equivalente a R$ 5.304,90, isto é, 5,07 vezes o salário mínimo vigente à época (R$ 1.045,00).

Enfim, a Política de Valorização do salário Mínimo é um exemplo nacional concreto do potencial transformador da participação direta dos trabalhadores e suas representações na formulação e implementação de políticas públicas, em especial, naquelas sobre a manutenção, recuperação e a valorização dos patamares mínimos de salários. Por isso, o salário mínimo legal no Brasil, que por longos períodos da história foi desrespeitado e rebaixado ao mínimo de subsistência, deve ser objeto de permanente vigilância dos trabalhadores e suas organizações representativas, bem como pauta central de suas agendas de lutas.

O Brasil não deve seguir na contramão das melhores práticas da agenda global de regulação de patamares mínimos de remuneração, como o faz desde o golpe de 2016. Como afirma o Relatório Global sobre Salários 2020 da OIT, a definição e valorização dos patamares mínimos legais de salários são instrumentos essenciais para o desenvolvimento econômico, combate à miséria e pobreza, e redução das desigualdades salariais de gênero e raça tanto em países centrais como em países periféricos, sobretudo, num contexto pós-crise de 2008 e assolado por uma pandemia que já ceifou mais de 200 mil vidas apenas no Brasil.

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Publicado originalmente em Escuta – Revista de Política e Cultura, Ver: https://revistaescuta.wordpress.com/2021/01/12/entre-o-minimo-e-o-necessario-o-esvaziamento-da-politica-de-valorizacao-do-salario-minimo-no-pos-2016/