A conversa telefônica entre Trump e Lula é o movimento mais recente de uma disputa que está longe de ser concluída. Como líder da nação dominante econômica, militar e culturalmente, mesmo que em declínio, cabe a Trump a iniciativa das ações. E ele costuma usar essa prerrogativa de forma incisiva.

Desde os primeiros dias do seu governo, ampliou de forma abusiva, o uso de meios econômicos para atingir objetivos políticos e decidiu aumentar tarifas, fazer embargos, sancionar países, controlar a exportação de produtos para países competidores (como impressoras de chips para a China), definir subsídios anticompetitivos, etc. Quase ninguém escapou, sejam os tradicionais alvos, como Rússia, China, Irã, Venezuela; ou amigos de longa data, como os países da Europa, Canadá, Índia e Japão. Isso mostra que está em curso um movimento geopolítico em escala global que, pode utilizar a sedução como meio de obter seus objetivos, mas não abre mão de manter o porrete sempre à vista. As razões locais, portanto, não são capazes de explicá-lo de forma adequada.

A direita brasileira, que reivindica o mérito dos brasileiros por terem sido duramente atingidos pelas tarifas de 50% pelos EUA, virou criadouro de um bizarro personagem: o traidor orgulhoso. No entanto, em poucos dias ficou claro que a “questão Bolsonaro” está longe de ser a motivação das ações americanas contra o Brasil.

A questão central já havia sido parcialmente captada na foto da posse de Trump, na qual os barões da tecnologia aparecem perfilados e sorridentes ao seu lado: Mark Zuckerberg (Facebook, Instagram, WhatsApp, Threads, Messenger), Jeff Bezos (Amazon), Elon Musk (Tesla, Space X, X, xAI), Sundar Pichai (Google), Tim Cook (Apple), Sam Altman (Open AI) e tantos outros executivos do setor que estavam presentes à cerimônia. O valor de mercado das chamadas “sete magníficas”, que inclui a Nvidia e a Microsoft, foi estimado em US$ 18,25 trilhões em junho de 2025. Para efeito de comparação, o PIB brasileiro é de US$ 2,13 trilhões e está entre os dez maiores do mundo.

Foi uma mensagem clara de que a perene aliança entre os interesses econômicos, políticos e militares (as Big Techs colaboram ativamente no esforço de guerra na Ucrânia) americanos será recrudescida, na tentativa de recuperar aos EUA a perdida posição de líder unipolar. Mark Zuckerberg, por exemplo, logo depois da posse anunciou o fim da política de checagem de fatos em todas as empresas da Meta, um claro alinhamento com Trump, que inúmeras vezes ameaçou a empresa.

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Assim, há duas questões-chave que verdadeiramente movem os atores centrais desse embate geopolítico, entre o Brasil e os EUA: o papel relevante do Brasil no BRICS e a regulação das Big Techs. No BRICS, o Brasil está construindo relações cada vez mais estratégicas com a China, a Rússia, a Índia e tantas outras nações de relevância para o comércio mundial, que possuem grande população e reservas minerais estratégicas. Essa rede de interações ampliou a interdependência e o crescimento do comércio em moedas que não o dólar. Entre 2005 e 2021, as exportações totais dos membros do BRICS saltaram de US$ 1,7 trilhão para US$ 5,7 trilhões: um crescimento de 229%. O comércio do Brasil com os países do BRICS já corresponde a 35% do total e continua em expansão. Foram essas relações e a insistente ação do governo em abrir novos mercados, que permitiu minimizar as consequências nefastas do tarifaço no Brasil.

Além de diminuir o ímpeto brasileiro na relação com o BRICS, Trump quer impedir a regulação das Big Techs no Brasil, empresas que passaram a atuar explicitamente como pelotão avançado dos interesses neocoloniais americanos. A regulação das plataformas digitais está sendo discutida desde 2002 no Congresso Nacional e foi defendida por Lula na campanha de 2022. Simultaneamente ao projeto enviado pelo governo sobre o tema (2023), tramita o projeto das “Fake News”, cujas correlações são evidentes, mas encontra resistência nos mesmos setores que lutam contra a aplicação de qualquer imposto às Bets.

A preocupação com a regulação dessas empresas é tão grande, que o atual secretário de Estado, Marco Rúbio, já havia criticado a suspensão do X no Brasil. Na época, ele afirmou: “A proibição nacional do X no Brasil levanta sérias preocupações sobre liberdade de expressão e excesso de poder judicial”, em postagem que sugestivamente continha a foto de Alexandre de Moraes ao fundo.

A política do porrete foi utilizada – mas a reação do governo abrindo novos mercados e a compreensão da sociedade de que isso foi um injustificado ataque contra a soberania nacional – não foi suficiente para colocar o governo Lula de joelhos. A reação firme, gerou uma solidariedade na sociedade favorável à defesa da soberania e contrária aos ataques internos e externos. Foi isso que fez Trump realinhar a sua estratégia e passar a investir na química da sedução. O que não significa abdicar do porrete, como mostra a manutenção das tarifas e o deslocamento da frota militar americana para águas muito próximas.

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Esse é o contexto que justifica os movimentos pendulares, de força e negociação, típicos das disputas geopolíticas entre atores relevantes. O governo Lula foi assertivo na resposta interna às agressões e em não ceder às pressões internas dos quintas-colunas, como o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas. Em evento promovido pela corretora Warren Investimentos, ostentando um boné pedindo para que se “Faça a América Grande de Novo”, ele sugeriu que “se Trump está querendo colecionar vitórias. Então, por que não entregar algumas vitórias?”. É possível imaginar uma frase que defina melhor um traidor orgulhoso? Essa disputa, no entanto, está longe de seu desfecho. Mas é interessante notar que o ambiente interno e externo parece estar crescentemente se modificando em favor da postura de defesa da soberania nacional, sem deixar de negociar o que pode ser negociado.

Há muito pela frente, mas ao não fazer a circunflexão ao império e impor ao governo Trump a necessidade de negociar, o governo Lula colocou a direita e seus satélites no seu devido lugar: a de traidores. Orgulhosos, mas traidores.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli  
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