Oh Lord, won’t you buy me
A Mercedes Benz?
My friends all drive Porsches
I must make amends

I worked hard all my lifetime
No help from my friends
Oh Lord, won’t you buy me
A Mercedes Benz?

Oh Lord Won’t You Buy Me
Janis Joplin / Bob Neuwirth / Marc McClure

Há poucos dias, neste Blog Terapia Política, foi publicado um artigo bastante relevante que focava nas várias epidemias que assolaram a humanidade através da história, relacionando-as às representações sociais e familiares e aos contextos históricos e políticos. Destaco o trecho: “A enfermidade é uma experiência multidimensional que transcende o indivíduo, influenciando e sendo influenciada por fatores sociais, culturais e institucionais. Narrativas coletivas mostram como estas podem variar em diferentes culturas e épocas, refletindo as crenças, valores e experiências compartilhadas da sociedade”. (Leda Rebello: Por trás da doença)

Com esse tema na cabeça, me percebo alarmado com o que parece ser o sintoma de um vírus prestes a explodir e se espalhar – por enquanto ainda apenas em uma grande cidade brasileira.

Sim, o vírus do Porsche amarelo! – Serão todos amarelos ou pode haver variação na cor? – o vírus atacou duas vezes em um curtíssimo espaço de tempo!

Em ambos os casos, por mais inusitado que seja, os veículos dos ataques não foram os próprios Porsches, mas sim os homens que o dirigiam. Ou seja, o veículo não era o veículo que transmite, o veículo do vírus era o motorista e o carro apenas sua embalagem servindo de transporte ao parasito. E pegando um termo usado na Epidemiologia, podemos chamar de “virulência” a severidade e a rapidez com que esse agente etiológico provoca lesões, constituindo importante causa de morbidade e mortalidade no Brasil e no mundo.

Em um caso, o veículo estava embriagado, no outro aparentemente não. Portanto, estar ou não embriagado, não é condição sine-qua-non para o uso dessa arma, ou ataque do vírus.

Arma? Eu falei arma? Será que a bancada da bala, sentindo a pressão da sociedade para a redução das facilidades para o porte, invertendo o momento de ouro que viveram durante o governo Bolsonaro, busca diversificar e inovar na linha: cada homem uma arma? Agora, para cada homem, seu veículo, sua arma? Recarrega-se nos postos de gasolina, não precisa de licença nem supervisão do exército….

Quando eu era adolescente, na época em que sonho de adolescente de classe média era uma velha calça Lee desbotada, uma gaita no bolso e, melhor ainda, se tivesse também um fusquinha com tração traseira, ter um Porsche era uma imagem inatingível, só havia na Europa e nos EUA. Creio que nem ricos no Brasil tinham Porsches. Antes do Collor era proibido importar. Era, portanto, imagem de cinema, de revista.

De repente, os Porsches estão aí, agora na TV e sem qualquer propaganda paga pelos importadores: estão batidos no poste, em cima de um carro de aplicativo, de uma moto…

Os motoristas dos veículos atropelados não estão nas imagens, já estão no necrotério. Os veículos que levam os vírus aos seus automóveis também somem, às vezes escondidos para dar um tempo, para disfarçar o bafo do whisky, mas acabam reaparecendo, agora atrás das grades… por algum tempo.

Há uma outra epidemia correlata, que surge logo após os eventos: pais, amigos, namoradas, que inventam histórias estapafúrdias para proteger os veículos contaminados pelo vírus. Mesmo tendo passado o risco de morrer, no banco do carona, saindo com alguns arranhões (afinal, o cinto de segurança e o design do carro ajudam a evitar maiores danos… aos passageiros, não a terceiros), ninguém é capaz de reagir ao poder da amizade e da grana, e denunciar a ausência de porte de arma, o atirar para matar.

A mãe que protege o filho, o faz porque o coração de mãe é maior do que qualquer erro causado pelo filho? Ou para redimir sua culpa de mimar, ajudar a criar o vírus do monstro e ainda dar de presente o veículo do vírus?

Não posso deixar de lembrar um dos episódios do excelente filme argentino Relatos Selvagens. Ali, como aqui, um rapaz de boa família se envolve em um acidente. Mais do que rapidamente o pai do jovem retira seu filho de cena e aciona os advogados para protegê-lo, desfazendo ou desmontando cenas, processos, etc. Para cada degrau das etapas, há que se molhar a mão de policiais e burocratas com propinas, para evitar o indiciamento. E cada vez os valores são maiores. Para comprar os policiais, os burocratas ou os próprios advogados contratados? A espiral cresce tão rapidamente e tão alta, que em dado momento, o pai acaba por desistir de proteger o filho, não paga nenhuma das propinas ou chantagens, deixando toda a estrutura de proteção a ver navios.

Mas, por aqui, parece que essas primeiras manifestações do vírus Porsche (que provavelmente são mutações de vírus anteriormente veiculados por outras marcas) estão conduzindo de fato à prisão e ao indiciamento, talvez pelo enorme clamor da sociedade. Será? A mãe que desfez a cena da bebida, que escondeu o filho, que ludibriou a polícia será penalizada? Os amigos que juram em falso como testemunhas, receberão alguma sanção?

Serão essas ações da Polícia e do Judiciário capazes de atacar o vírus e de minimizar este que é um problema de saúde pública?  Desde há muito o Ministério da Saúde e também secretarias estaduais de saúde apontam os números de mortes por acidentes, especialmente por motos e confirmam que as mortes no trânsito em decorrência de acidentes veiculares configuram a oitava principal causa de óbito. Ou seja, o veículo, como arma, é um vírus que já contaminou toda a sociedade. A Organização Mundial da Saúde (OMS) deu início à Década de Ação pela Segurança no Trânsito em 2021, indo até 2030, com a ambiciosa meta de prevenir ao menos 50% das mortes e lesões no trânsito até 2030. E, de acordo com dados, cerca de 1,25 milhão de pessoas morrem no mundo por ano em acidentes de trânsito e, desse total, metade das vítimas são pedestres, ciclistas e motociclistas.

Especialistas apontam o aumento da violência no trânsito devido a estresse e desequilíbrio emocional dos motoristas. E na maioria dos casos um motivo banal desencadeia atos de grande agressividade, o que ultrapassa qualquer interpretação qualificada profissionalmente. Estariam os proprietários dos Porsches contaminados extremamente estressados? Preocupados com as prestações do carro a pagar?

Como na campanha antitabagista que obrigou a que os maços de cigarros indiquem que a nicotina mata, será que as revendedoras Porsche também deveriam fazer uma campanha com sua clientela? “Compre um Porsche, mas não o use como arma, isso depõe contra a marca do carro, desvaloriza nosso esforço de importação, outros milionários acabarão por preferir BMW ou Mercedes Benz….”

O diferencial no vírus que estamos observando é a abismal distância social e econômica entre os que usam seu Porsche como arma, e os atingidos pelos desvarios. Estes, quase sempre, são arrimos de família, trabalhadores em serviço. Para estas famílias, uma pequena ajuda para redimir o pecado, Que tal um salário mínimo?

Bem, e os Porsches? Ah, a seguradora dá perda total e paga um novo. Será que há alguma cláusula na apólice em que, considerando a evidente contaminação do motorista pela doença – prepotência, raiva, exibicionismo, bebida, arrogância, risco de matar – o seguro deixa de pagar o prejuízo? Bem, mas ainda assim, esse valor fará falta à família? Provavelmente não, se o vírus está preso e perdeu a carteira….

***
Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone
Clique aqui para ler artigos do autor.