A maioria dos analistas está saudando o retorno da política industrial. Essa narrativa, para usar a palavra da moda, é uma distopia, outro modismo, pois a política industrial nunca foi embora. E esta forma de focar o problema precisa ser rechaçada, para evitar mais confusão nestes tempos confusos.
O mesmo ocorre com o termo inovação, que passou a ser um abre-te sésamo para a justificativa das “novas políticas industriais”, seguindo a moda das redes sociais e da grande mídia que afirmam que tudo o que é “moderninho” – em especial o que é “unicórnio” – é inovação. Principalmente, voltou a surgir a velha discussão sobre patentes como base para a inovação, que parecia ter sido abandonada há mais de trinta anos. Patente não é inovação, é um direito a uma renda futura para o proprietário, caso ela tenha sido bem-sucedida e tenha se transformado em uma inovação. Portanto, existem muito mais coisas no processo de transformar uma patente ou invenção em uma inovação do que os divulgadores midiáticos e moderninhos podem supor.
Essas mesmas considerações se aplicam ao novo conceito mágico – a relação universidade-empresa. Ele não define corretamente o papel da universidade, que é a formação de cidadãos com espírito crítico sobre a sua condição humana e social; e não define a empresa, que é o locus de acumulação de capital que introduz a inovação para auferir lucros monopolistas pelo maior espaço de tempo possível. Não existe nenhuma possibilidade de o espírito empreendedor individual resolver essa contradição.
Inovação é um processo sistêmico, coletivo, incerto, paciente e caro. Ninguém dorme pensando em resolver um problema tecnológico para colocar um produto ou processo novo ou modificado no mercado e acorda com a solução. Esse processo envolve avanços e retrocessos e a formação de equipes que vão compartilhar um conhecimento formal e tácito. Por sua vez, esse conhecimento vai ser apropriado por cada empresa inovadora, constituindo o seu ativo intangível que a diferencia das demais. Além disso, ele tem características heterogêneas setoriais que fazem com que as empresas inovadoras não possam aplicar receitas amplas e gerais que se aplicam uniformemente.
Daí porque a ideia neoclássica de políticas horizontais homogêneas para todas as empresas, ao invés de ser uma política transformadora, é conservadora das condições pré-existentes do mercado. Também a ideia de políticas industriais para corrigir falhas de mercado parte de uma ideia metafísica de que existe um mercado perfeito como objetivo a ser alcançado pela política.
Outra questão relacionada à política industrial é se o capitalismo de livre mercado fortalece a democracia ou desencadeia forças antidemocráticas. Essa questão surgiu pela primeira vez na “Era do Iluminismo”, quando o capitalismo foi revolucionário para quebrar a rígida ordem feudal. Essa visão de mundo, que ainda permanece viva nos livros de economia pelos (neo)liberais, prevê uma sociedade de oportunidades iguais de pequenos produtores e consumidores, e despreza o poder de mercado originado pela desigualdade na acumulação de capital. Nessas condições existiria o verdadeiro “socialismo de mercado” (sic), com igualdade de oportunidade para todos, como descrito em parágrafo anterior.
Para estes formuladores de teses econômicas – notem – não existe Estado, e a luta de classes foi abolida. A economia das oportunidades iguais encontrou na Inglaterra vitoriana e nos Estados Unidos, os países hegemônicos do capitalismo, o seu habitat natural, seduzindo cidadãos e cidadãs com a ideia de que o capitalismo de livre mercado era a coluna para o american way of life.
Essa narrativa ideológica ficou bem distante do capitalismo que se consolidou com a Segunda Revolução Industrial e que levou os EUA para a liderança mundial. A competição tecnológica entre empresas inovadoras que procuram acumular poder de mercado difere da competição convencional de preços, pois produz apenas um ou alguns poucos vencedores. Essa competição não permite às empresas sobreviverem com lucros zero, como no modelo de competição perfeita, central da teoria (neo)liberal, o que acarreta a ausência de poder de mercado.
As grandes empresas que se formaram nesse processo, os vencedores da competição tecnológica, os oligopólios dominantes no mercado mundial utilizam várias estratégias para dominar, entre elas as contínuas atualizações tecnológicas, a compra e/ou fusão com concorrentes e a construção de barreiras à entrada, pricipalmente através da diferenciação de produtos e processos.
A liderança e o domínio tecnológico são a base para alcançar o poder de mercado sobre os produtos vendidos aos consumidores e permitem que uma empresa extraia lucros monopolistas ou extraordinários. O poder de mercado torna-se tão dominante que os concorrentes potenciais preferem cooperar, caso típico da Petrobras.
Tal economia não só emprega recursos de forma ineficiente, como produz uma concentração de poder econômico e político que ameaça a democracia, cuja sobrevivência passa a depender da criação de novos instrumentos políticos para protegê-la.
Um pouco de história
A Primeira Era Dourada (1870-1914) é um ponto de referência essencial para a compreensão do momento atual. Foi um período de extraordinário progresso tecnológico e econômico, que produziu a maioria das principais inovações do século XX. Esse processo de acumulação de capital levou a que entre 1895 e 1904, mais de duas mil empresas fossem fundidas, formando 157 grandes conglomerados, deixando praticamente todos os setores da economia dos EUA dominados por oligopólios. Junto com isso, surgiu a ideia de que esses líderes estavam fazendo a “obra de Deus” de fortalecer a economia, salvando-a da “competição por preços”, apoiados em ideias eugenistas e na teoria do darwinismo social. Não é por acaso que se fortalece nessa época a concepção de que os líderes empresariais eram homens superiores e inteligentes, vencedores no processo de seleção natural.
Como eles eram os líderes dos grandes oligopólios, esse processo de darwinismo econômico também se aplicava às suas empresas. Assim, eles estavam construindo uma nova sociedade, na qual alguns homens fortes liderariam. Esse processo fazia com que nos ciclos econômicos de baixa as empresas mais fracas fossem eliminadas ou compradas pelas líderes.
A “Grande Depressão dos Anos Trinta” acabou com a concepção de que o Estado não deveria intervir na economia e na sociedade com políticas para contrarrestar os efeitos nocivos do funcionamento do livre mercado. É importante lembrar que já em 1901 começou uma reação com a legislação antitruste. Porém foi com o “New Deal” que se rompeu a linearidade do pensamento sobre livre mercado e se inaugurou uma era dourada para o capitalismo no pós Segunda Guerra Mundial, que vigorou até os anos setenta. Houve a intervenção do Estado para implementar políticas sociais, econômicas, industriais e de inovação para garantir o bem-estar dos cidadãos. É claro que o enfrentamento geopolítico com o bloco comunista teve um papel importante no convencimento das elites políticas da necessidade de implementação dessas políticas.
A política de livre mercado agrava os resultados do processo de concentração e centralização do capital. Os cidadãos e cidadãs são deixados à própria sorte. Não existe política pública para compensar os efeitos negativos da acumulação de capital e essa desiguladade de renda e de meios de subsistência tornam-se então o preço para os ganhos coletivos do crescimento econômico e geram injustiça e ressntimento, que acarretam graves consequências políticas.
Em síntese
Voltemos ao nosso ponto central. A vitória americana na Segunda Guerra Mundial, principalmente pela afirmação da sua supremacia tecnológica, com o lançamento das duas bombas atômicas no Japão (com o principal objetivo de mostrar na prática essa superioridade), também serviu para a necessidade de se elaborar e praticar uma política de inovação industrial institucionalizada que não existia até essa época.
O documento que marca o início dessa nova concepção de política, “Science, the Endless Frontier”, publicado em julho de 1945, é a definição da posição de liderança dos EUA na área tecnológica. Se não fosse aprovada a institucionalização de uma política de inovação com recursos públicos para manter e continuamente renovar o que se tinha alcançado com o esforço de guerra, os EUA poderiam perder a sua liderança principalmente na competição geopolítica com o poder soviético.
A partir daí, os EUA tiveram períodos com uma política mais explícita de inovação industrial, como nos anos sessenta com a atualmente badalada missão lunar que seguia o mesmo modelo organizacional do “Projeto Manhattan”.
O importante não é salientar os períodos em que a política de inovação industrial foi formal ou não. Mas ressaltar que o fator importante por todo esse período foi a praticamente constante proporção do orçamento federal destinado para defesa e saúde, 50% e 25% respectivamente. Isso indica que a política de inovação industrial nunca deixou de existir mesmo que a política americana para fora tenha se baseado em sua negação e no famoso lema “faça o que eu digo, mas não que eu faço”.
Por fim, indica também missões, prioridades, objetivos, metas, insituições de pesquisa e empresas executoras, principalmente as líderes, com objetivos, metas e recursos contínuos; subsídios e apoio para os oligopólios líderes continuarem líderes. Como agora na destinação de recursos para a Intel, Nvidia, o impedimento da compra da United States Steel pela Nippon Steel e a intervenção na TikTok para expurgar a direção chinesa e permitir que ela continue a operar nos EUA.
A ameaça geopolítica da competição com a China provoca a necessidade de uma política de inovação industrial mais explícita e que oriente e coordene os investimentos públicos e privados.
Nós sabemos fazer essa política. Já fizemos com a Petrobras, Vale do Rio Doce, Eletrobras, CTA/Embraer para lançar o Bandeirante, o programa do álcool, primeiro combustível verde, a Embrapa no cerrado com a soja. Será que desaprendemos? Falta vontade política e estratégia para afirmar os nossos interesses? Ou não sabemos quais são? Vamos acreditar que o mercado vai resolver?
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
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