UMA ESQUERDA DE ALMA BRANCA

Por uma nova Esquerda

A Esquerda brasileira morreu.

Para que se compreenda em profundidade o porquê deste desastre e a necessidade de construirmos uma nova Esquerda, é fundamental examinarmos, além dos aspectos aqui apontados, alguns temas que estão na origem da agonia e morte da Esquerda no período pós ditadura, temas estes alinhados ao final deste texto.

Tendo em vista as naturais limitações de espaço, pretende-se que tais temas sejam abordados em futuros artigos, seja por este escriba ou por outros autores dispostos a enfrentar a questão.

Não se trata aqui de debater aspectos táticos, ou mesmo estratégicos, do embate da Esquerda com o bolsonarismo e a direita conservadora, questão que hoje está posta, embora seja fundamental derrotarmos o bolsonarismo nas eleições de 2022.

Trata-se, isto sim, de delinear, em suas características principais, os temas e comportamentos fundamentais que, na práxis da Esquerda, em particular de um segmento específico dessa Esquerda, estiveram e estão em total contradição com seu discurso histórico e teórico. Práxis esta que nos levou à morte do que chamo velha Esquerda e, em contrapartida, à ascensão do conservadorismo mais raivoso, preconceituoso e violento da sociedade brasileira e de sua representação atual mais eminente, o bolsonarismo.

A opção por essa abordagem decorre da certeza de que, pelas razões expostas neste e em próximos textos, se quisermos salvar de sua extinção a Esquerda mais consequente com suas origens e ideais históricos, é fundamental reinventarmos essa Esquerda.

Entretanto, para fugirmos do revolucionarismo retórico, essa reinvenção da Esquerda deve partir da construção de um novo projeto para um Brasil efetivamente igualitário, solidário, radicalmente democrático e onde um efetivo Estado do Bem-Estar Social (EBES), para todos, seja o denominador comum de todas as políticas públicas de um Estado democrático forte e atuante.

Para que isto seja possível, é fundamental enfrentarmos, entre outros, o conjunto de temas alinhados ao final, que se supõe necessários para entendermos a questão principal e viabilizarmos a reinvenção da Esquerda.

O simples esboço aqui delineado já permite supor que a reinvenção da Esquerda brasileira é um projeto de longo prazo.

A prática como critério da verdade

Tentativamente, o principal critério de análise será o contraste entre o discurso da Esquerda e sua práxis, sua ação.

Ou seja, a práxis como critério da verdade: “A questão de saber se ao pensamento humano pertence uma verdade objetiva não é uma questão da teoria, mas uma questão prática. É na práxis que o ser humano tem de comprovar a verdade, isto é, a realidade e o poder, o caráter terreno do seu pensamento. A disputa sobre a realidade ou não realidade de um pensamento que se isola da práxis é uma questão puramente escolástica” (MARX; ENGELS, 1974, p. 666, Teses sobre Feuerbach [2]).

A Esquerda brasileira morreu

Vladimir Safatle (2020a), em “Como a esquerda brasileira morreu”, registra que um dos principais signos da morte da esquerda é o fato de que, frente às reformas neoliberais do governo Bolsonaro, “a esquerda brasileira não é mais capaz de impor outro horizonte econômico-político”. Ver também Fiori (2020a) e (2020b).

O parâmetro utilizado por Safatle é preciso: a capacidade de “impor [propor e colocar em debate] outro horizonte econômico-político”, ou seja, outro projeto nacional efetivamente de esquerda e efetivamente igualitário do ponto de vista social.

Entretanto, revendo a história da Esquerda no pós ditadura à luz deste parâmetro proposto por Safatle, é fácil perceber que a agonia da Esquerda que resultou em sua morte se revelou nas eleições de 2002, quando se expressou publicamente o transformismo e a cooptação pelo neoliberalismo progressista do PT, do lulismo e de toda a Esquerda aliada, partidária ou não.

Mas é o próprio Safatle (2020b) que, dias após o artigo citado, retoma esse debate para afirmar que “para a esquerda, morrer é só o começo [de uma nova vida]”, desde que sejamos capazes de superar a melancolia que nos leva a “não encarar as derrotas quando elas ocorrem, não querer ir até o fundo das derrotas a fim de compreender sua real extensão”.

É isto que se tenta fazer em relação à agonia e morte da Esquerda brasileira: “encarar as derrotas quando elas ocorrem… ir até o fundo das derrotas a fim de compreender sua real extensão”.

De que Esquerda estamos falando?

Podemos começar definindo “Esquerda” de modo amplo, por isso a maiúscula.

Conforme Cruz (2019): “Convém destacar que a esquerda… fica definida em termos ontológicos e abrange os movimentos que lutaram por mudar o mundo com o princípio de igualdade no centro de seu programa”. Sobre ser de “Esquerda”, ver também Vieira (2019), Silva (2019) etc.

Para nossos fins vale acrescentar: “mudar o mundo com o princípio de igualdade no centro de seu programa” a partir e por meio do regime democrático liberal, caso da Esquerda brasileira pós ditadura, já que o socialismo real deve ser reinventado.

Entretanto, nos tempos que correm, há um outro aspecto que, juntamente com os dois anteriores, nos permitem definir mais precisamente a tal Esquerda a cuja morte nos referimos. Trata-se da importância, para essa Esquerda, do papel central do Estado como indutor e direcionador do desenvolvimento socioeconômico e de Políticas Sociais Públicas efetivamente estatais, universais, gratuitas e de qualidade, para todos, como deveriam ser a Saúde e a Educação públicas.

Nos tempos que correm esse aspecto é importantíssimo, pois é ele que, para além dos dois anteriores, nos permite distinguir os “cristãos novos” do liberalismo e do neoliberalismo ─ os liberais e neoliberais progressistas ─, do que aqui denominamos de Esquerda. Sobre esses “cristãos novos” ver Fraser (2017) e Domingues (2014).

Claro que tal definição de “Esquerda” tem por base seu próprio discurso sobre si mesma, para que se possa contrastá-lo com sua práxis, método central de qualquer análise que se pretenda séria nesta questão.

Uma “Esquerda de alma branca”

Mas essa Esquerda, pelas razões alinhadas nos textos citados, e por uma práxis que veremos aqui e em próximos artigos, morreu sem nunca ter sido para além do discurso.

Entretanto, como alma penada, continua desfilando na cena brasileira como aquela que um dia pretendeu ser.

Ou pior, continua desfilando na cena brasileira com seus líderes distribuindo indulgências e absolvições retóricas a seus milhares de seguidores e divulgadores nas classes médias e altas intelectualizadas, sem ao menos lhes cobrar um ato de contrição por sua “luta” meramente retórica e platônica por políticas sociais efetivas e universais e contra nosso profundo, largo e intransponível abismo social.

Estes seguidores e divulgadores dessa que denomino “esquerda de alma branca” estão na Academia, na gestão das “políticas sociais pobres para os pobres”, na tecnoburocracia estatal, nas ONGs, nos sindicatos das indústrias de ponta e em muitos dos partidos ditos de esquerda, todos, conscientemente ou não, se cevando, de um modo ou de outro, dos benefícios resultantes de suas atenções e relações com o Estado e as “políticas sociais pobres para os pobres”, como Saúde e Educação públicas, das quais querem distância como usuários, pois recebem subsídios públicos, diretos ou indiretos, para que desfrutem de bons planos privados de saúde, da medicina privada e de boas escolas privadas para seus filhos.

É necessário registrar que não se trata aqui de problemas pessoais ou de caráter, mas sim de relações objetivas e subjetivas de classe, determinadas pela inserção efetiva e relacionamentos reais, dos segmentos sociais mencionados, no que se refere à:

  • (I) sua dependência histórica da Saúde e da Educação privadas como clientes subsidiados com recursos públicos;
  • (II) sua independência das “políticas sociais pobres para os pobres” como usuários;
  • (III) sua dependência dessas “políticas sociais pobres para os pobres” como ocupantes dos milhares de cargos de “poder” e remuneração dessas políticas;
  • (IV) suas relações, na Academia, com o “poder” de proposição e definição de políticas públicas de Saúde, Educação, Previdência e Assistência;
  • (V) suas relações com o “poder” e as vantagens financeiras remuneratórias no vai-e-vem entre a Academia e a gestão e operação dessas “políticas sociais pobres para os pobres”.

Ocorre que, para aqueles que observam com cuidado seu percurso e sua práxis, em contraste com aquele autorretrato mencionado acima, esta Esquerda há longos anos tornou- se uma “esquerda de alma branca”, ou seja, uma esquerda cujos líderes trocaram, conscientemente ou não, sua alma vermelha original por uma falsa alma branca, na verdade uma alma neoliberal progressista.

A analogia aqui é, propositadamente, com uma das situações e expressões racistas mais candidamente violentas de “antigamente”, o “negro de alma branca”.

No tempo em que o racismo era ainda mais institucionalizado, e por isso mais explícito e excludente do que é hoje, “negro de alma branca” era um elogio e sinal de “aceitação” dos brancos e poderosos aos negros que, conscientemente ou não, premidos pela violenta discriminação institucionalizada e estrutural, renegavam ou tentavam disfarçar suas origens e cultura afro-brasileiras, a começar por sua própria estética.

E aqui se apela para a analogia dessa Esquerda com a expressão “negro de alma branca” porque, ao contrário da situação de discriminação, exclusão e violência racial que induziu o fenômeno social traduzido nesta última expressão, o que denomino de “esquerda de alma branca” foi tão somente resultado de “opções” de líderes e segmentos daquela Esquerda de “antigamente”, no quadro da luta política e social pós ditadura, para que fossem aceitos pelas classes dominantes no jogo político-institucional, com as regras e limites determinados por aquelas mesmas classes dominantes.

Por isso mesmo, para compreendermos a necessidade inadiável de reinventarmos a Esquerda, é fundamental que a percepção dessa “esquerda de alma branca” desperte em nós o mesmo horror que hoje nos provoca a simples lembrança da expressão “negro de alma branca”. Pois a “alma branca” de que se traveste hoje a antiga Esquerda é, do mesmo modo, tão candidamente violenta quanto aquela outra, no que dissimula sua face neoliberal progressista que garante a continuidade da exclusão social.

As armadilhas, tentações e fantasias no caminho da Esquerda histórica

Por tudo isto, como dissemos, para reinventarmos a Esquerda, é fundamental “encarar as derrotas quando elas ocorrem … ir até o fundo das derrotas a fim de compreender sua real extensão”. Mais especificamente, é fundamental desvelarmos as armadilhas, tentações e fantasias que seduziram a Esquerda histórica e produziram esta “esquerda de alma branca”.

Assim, é essencial que sejam analisados, entre outros, os seguintes temas estratégicos para nossos objetivos, não necessariamente nesta ordem: neoliberalismo progressista e luta pela hegemonia cultural, política e econômica na sociedade brasileira; transformismo e cooptação na Esquerda e o lulismo; a corrupção na sociedade brasileira; classes média e alta de esquerda na luta platônica por políticas sociais universais; a realidade das “políticas sociais pobres para os pobres” e as políticas assistenciais meramente compensatórias; as “bolsas famílias” e as “bolsas empresários”; o abismo social no Estado: Estado rico e Estado pobre; a importância central de um efetivo Estado do Bem-Estar Social (EBES) para todos; o federalismo municipalista brasileiro no centro da privatização e degradação das políticas sociais e da inviabilização de um EBES; y otras cositas.

Referências:

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.

Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone
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