O bolsonarismo e essa vasta rede de ódio e obscurantismo que o acompanha era algo inevitável em nossa história? Essa pergunta me veio à cabeça enquanto lia “Ascensão e Queda do Terceiro Reich”, livro do jornalista e escritor americano William L. Shirer, que foi correspondente na Alemanha durante os anos 30 do século XX e que depois retornou para os julgamentos em Nuremberg.

Um dos inúmeros personagens históricos que passaram pelo volumoso e fascinante livro de Shirer foi o general Werner Von Fritsch, que foi chefe do estado maior do exército alemão até 1938, quando suas diferenças inconciliáveis com o nazismo o fizeram ser defenestrado. Quando demitido, foi procurado por alguns conspiradores, inquietos com os caminhos pelos quais Hitler conduzia a Alemanha. Negou-se a participar e justificou com uma afirmação fatalista e teatral que provocou a pergunta inicial do texto: “Esse homem – Hitler – é o destino da Alemanha para o bem ou para o mal”.

Desconheço os motivos intelectuais do general para fazer essa afirmação, mas podemos ter uma ideia a partir do perfil dele traçado por Shirer, comum na cúpula militar alemã. Conservador, da nobreza prussiana, saudoso da dinastia dos Hohenzollern, certamente nenhuma lágrima derramou pela democracia quando Hitler assumiu e implantou uma ditadura totalitária.

Suas críticas não eram ideológicas, morais ou éticas, eram militares e, também, não menos importante, estéticas. Não acreditava que a Alemanha pudesse ao mesmo tempo derrotar a Europa Ocidental e avançar sobre o leste europeu, confrontando também a União Soviética, assim como não engolia aquele bando medíocre e grosseiro que formava a cúpula do partido nazista. Aqueles que antes serviam à classe da qual pertencia o general agora lhe davam ordens… e o problema não eram as ordens.

Outro livro reforça a ideia de que a política racial e expansionista do partido nazista era algo amplamente aceita, ao menos como ideia, não só pelos militares, mas por larga parcela do povo alemão. Pode-se dizer que foi uma consequência do pangermanismo e da unificação alemã no século XIX.

Em “O Império de Hitler, a Europa Sob o Domínio Nazista”, Mark Mazower relata em várias passagens como o caldo identitário que formou o Estado Alemão estava presente no nazismo. Hitler não foi uma aberração passageira que acometeu o povo mais erudito do mundo, foi um caminho perfeitamente possível em virtude do modo como aquela sociedade idealizava a si mesmo e aos “outros”, os não alemães. E a idealização dos judeus, eslavos e todos os demais povos do leste europeu não era propriamente favorável, como a história nos conta.

A derrota na Primeira Guerra e as humilhações impostas em Versalhes certamente ajudaram, mas o nazismo só foi possível na Alemanha porque sua concepção de mundo encontrava respaldo entre militares, políticos, intelectuais e criadores de galinha, como Himmler era antes de ascender vertiginosamente na hierarquia do partido. As condições históricas radicalizaram concepções de mundo pré-existentes.

Em uma passagem, Mazower cita o historiador judeu Ernst Kantorowicz, que escreveu em 1941 que “a Alemanha do futuro que muitos historiadores previam e pela qual trabalhavam se aproximava em muitos aspectos do Estado nazista de hoje”. Logo depois, o próprio Mazower arrematou: “naturalmente, como é típico dos intelectuais, a maioria desses estudiosos acabou se desiludindo quando os nazistas não implementaram as ideias deles – mas não antes que os nazistas expusessem quanto deviam a eles”.

Diga-se que a crença de povo ungido era a regra na Europa, incluindo os poloneses, os sérvios, os croatas, os russos, os húngaros, os franceses, os ingleses… todos se odiavam mutuamente com igual fervor, como comprovam os mais de 100 milhões de mortos nas guerras europeias dos séculos XIX e XX, além daqueles que nesse mesmo período sofreram os efeitos colonialistas desse pensamento europeu racista e excludente, na África e na Ásia.

Mas foi a tragédia nazista, por sua enormidade e porque germinou dos cantos sombrios – mas não escondidos – da construção da identidade alemã, que me fizeram formular a pergunta na mesma linha sobre nosso País: Bolsonaro era nosso destino?

Por favor, não estou comparando a Alemanha com o Brasil e nem Hitler com Bolsonaro. É que antes mesmo de Bolsonaro subir ao palco como protagonista me vinha outra pergunta sempre que via resistências contra propostas políticas para enfrentar nossas muitas mazelas cotidianas: por que nos odiamos tanto? Tentava e tento fazer essa pergunta sem nenhum páthos. Simples questionamento objetivo.

Lembro que Hitler amava o povo alemão, amava tanto que queria dizimar ou escravizar ou colocar em posição subalterna tudo que não fosse “ariano”. O nazismo foi uma catástrofe, claro, mas todos os povos europeus, em regra, buscaram identidades étnicas e sob o guarda-chuva da nação construíram sociedades minimamente igualitárias.

O problema deles sempre foi o “outro”, que agora não é mais o vizinho imediato. Com a União Europeia buscam uma identidade comum, mas os problemas dos imigrantes nos mostram que a chaga “racial” ainda é muito forte naqueles povos, agravada pela longa crise econômica.

Nossa questão é de outra ordem. Quase nunca fomos uma ameaça ao outro (paraguaios que não me ouçam), mas sempre fomos uma tragédia para nós mesmos, a nossa própria nêmesis.

Criamos autoimagens dúbias. Primeiro, como nos mostra João Freire Filho, em “Era uma vez o país da alegria”, a representação de um povo pacato, alegre e festeiro, que convive em amenidade e cortesia. Por outro lado, Jessé Souza, em “A tolice da inteligência brasileira”, no qual sustenta que a interpretação social brasileira dominante no século XX nos enxergou como uma sociedade pré-moderna, “patrimonialista”, avessa ao “republicanismo”.

Essa dubiedade identitária privado-pública se complementa, me parece, e pode ajudar a explicar o porquê de não enxergarmos ou simplesmente naturalizarmos absurdos cotidianos evidentes. Seríamos o País do “jeitinho”, do compadrio, do excesso de feriados, da corrupção, mas, não teria jeito, seríamos culturalmente assim, só queremos saber de festa e futebol.

E que bom seria se essas autoimagens enganosas irradiassem apenas das chamadas “elites”, seria confortável e poderíamos, afinal, sonhar com o dia em que as tiraríamos do poder e a perspectiva de um mundo Escandinavo se abriria. Mas não creio que seja assim, como vimos nas “jornadas de junho” em 2013, que podem ser acusadas de muita coisa, exceto de que não foram representativas.

Naquele momento, o caldo entornou e a visão identitária depreciativa apontada por Jessé Souza aparentemente descambou para um ódio coletivo sem freios, que se espalhou por todos os lugares e classes, colocando em xeque a outra imagem, de povo alegre e cordato, como apontou João Freire aliás.

De algum modo liberamos o monstro que hoje nos assombra, que estava em um canto sombrio, mas não escondido, para quem quisesse ver. E chegou à presidência da república, porque Bolsonaro é esse ódio encarnado, sem retoques. Às favas com os escrúpulos das aparências.

Quais foram os gatilhos históricos e políticos que nos levaram a Bolsonaro? Não ignoro que os governos petistas de diversas maneiras tocaram em pontos nevrálgicos que fizeram o monstro revelar-se sem disfarces, mostrando que não éramos o idealizado povo cordato e pacífico. Mas certamente, há outras explicações, inclusive a incapacidade de nossas “elites” (aí sim!) de disfarçar nossa monstruosidade, coisa que conseguiram até mesmo em períodos ditatoriais. Havia um “projeto” em 64, mesmo que apenas para parte minoritária da sociedade, mas a manutenção de nossa realidade violenta era obtida com discursos retóricos e pequenas concessões, migalhas.

Em algum momento, após ajudar a despertar o ódio sem disfarces, os grupos que pensam dirigir os destinos do País perderam o controle. Ainda que tenha contado com apoio decisivo desses atores, Bolsonaro se impôs, não foi escolhido.

Assim como Hitler e o nazismo representaram a radicalização de atavismos construídos ou fortalecidos durante a unificação alemã, que a turma do general Fritsch não conseguiu conter, Bolsonaro é a personificação sem disfarces da nossa autoimagem que não acredita na ideia de nação.

E talvez, tragicamente, também cheguemos à conclusão de que Bolsonaro era nosso destino. Uma hora teríamos que nos olhar a sério no espelho.