Essequibo: tão perto, tão longe
Há pouco mais de dez anos, fiz uma viagem de trabalho para Boa Vista, Roraima. Longa viagem de várias horas desde o Rio de Janeiro, com escalas em Brasília e Manaus. Saí cedo do Rio, cheguei no começo da tarde por lá, mesmo com a hora a menos do fuso horário. Desço no aeroporto e tomo um táxi para o hotel, a atividade seria só no dia seguinte, pela manhã. Na conversa com o taxista, falo um pouco da longa viagem, de horas. A reação dele é a minha primeira surpresa, pela frase insólita: “É, o Brasil é mesmo muito longe!”. Comecei a ver que não se consideravam por lá exatamente no Brasil, por conta do isolamento que a distância causava.
Mas, para nossa conversa aqui, vale mais o segundo assunto. Assim que falou da distância, ele seguiu oferecendo serviços, dizendo que, caso eu quisesse, poderia me levar a Lethem, na Guiana, que ficava a cerca de uma hora e meia por estrada, a nordeste de Boa Vista, ou a Santa Elena de Uairén, na Venezuela, ao norte, a cerca de três horas, dependendo das condições da estrada. Naquela altura, a Guiana era para fazer compras de produtos importados em lojas da fronteira, em geral de chineses ou descendentes de indianos, e a Venezuela era para conhecer – na época, petróleo caro, os venezuelanos eram os ricos, vinham fazer compras em Boa Vista.
Lembrei-me dessa história quando comecei a ver os debates sobre Essequibo, a região hoje correspondente a mais de metade do território da Guiana, reivindicada pela Venezuela. Lethem, a cidade guianense na fronteira, fica nessa área da Guiana que, de fato, parece ter muito pouca conexão com a área litorânea onde está Georgetown, a capital do país, e onde se concentra a população guianense. Uma área perdida, no meio da floresta, com pouca população, sujeita a polêmicas desde que potências coloniais europeias, Espanha, Inglaterra, Holanda, Portugal e França, ocuparam o território da América do Sul, desconsiderando as populações originárias que já estavam por aqui, e recortaram o seu território de acordo com seus interesses e seu poder.
A área da Guiana foi ocupada por ingleses, holandeses e franceses. Os franceses continuam lá, com o território da Guiana Francesa, fronteira estranha entre o Brasil e a União Europeia, através de território sob domínio francês. As antigas Guianas inglesa e holandesa se transformaram em países independentes, a Guiana e o Suriname, respectivamente.
O antigo território português virou Brasil, independente desde 1822. O território antes sob controle espanhol se partiu em muitos países, vendo o sonho de Bolívar se esfacelar e, na área norte, viu a antiga Gran Colombia se dividir entre Equador, Colômbia e Venezuela, países cujas bandeiras até hoje guardam semelhança e as mesmas cores.
Da polêmica colonial entre Espanha e Inglaterra derivam as disputas territoriais que, na sequência, envolveram a maior potência mundial da época (século XIX), a Inglaterra, e a Venezuela recém-independente. E, a partir de meados dos anos 1960, com a decadência inglesa e a independência de sua antiga colônia, entre a Venezuela e a Guiana.
A Venezuela estava, desde então, sujeita a ciclos de riqueza e pobreza que não cessam mais, dependentes dos preços internacionais do petróleo. Celso Furtado, o brilhante economista, já em 1957, enviado em missão da CEPAL àquele país, observava que, ao contrário de quase todos os seus parceiros na América Latina, que viviam sob escassez de divisas, a Venezuela era um caso de “subdesenvolvimento com abundância de divisas”, onde a riqueza do petróleo trazia uma quantidade de divisas que mantinha o câmbio local sobrevalorizado e inviabilizava a chamada “substituição de importações” e a industrialização, quadro que segue até hoje.
Provavelmente por esse motivo – o petróleo – a Inglaterra achou por bem, no momento em que a Guiana transitava para a independência, abrir espaço para suas empresas de petróleo na Venezuela, reabrindo de seu lado o litígio fronteiriço com a Venezuela, reconhecendo que ele não estava resolvido, o que sempre foi a posição da Venezuela, mas não a da Inglaterra, que se aferrava a uma arbitragem de fins do século XIX sobre o tema. A Guiana, independente, herdou então o litígio com a vizinha Venezuela, tema que volta à pauta de tempos em tempos, dependendo da temperatura política da Venezuela, e dos interesses em jogo (no quadro atual, as enormes reservas de petróleo encontradas em Essequibo).
Temos assim um litígio não resolvido, que se traduz em uma disputa importante de fronteira na região. Vale lembrar que, no momento em que a Inglaterra reconheceu de novo que existe um litígio, a Venezuela tinha um revezamento de governos tradicionais, entre partidos que compartilharam por décadas o poder: a Ação Democrática (de viés mais social-democrata) e o Copei (de orientação democrata-cristã) – no fundo, uma velha divisão entre a oligarquia local. O fim desse bipartidarismo de fato só foi quebrado pela ascensão do chavismo a partir do final dos anos 1990. A Guiana, na independência, em 1966, tinha um governo de esquerda, das forças que tinham capitaneado a luta anticolonial.
E o Brasil com isso? Independentemente do mérito do litígio, e ao contrário do que expressou o taxista de Boa Vista, o Brasil faz fronteira com ambos os litigantes, o Brasil não fica “tão longe”. A disputa ameaça não apenas trazer um conflito armado para a fronteira do Brasil, caso as partes resolvam tentar resolver a polêmica com o uso da força, como também já trouxe os EUA para as nossas fronteiras – dada a disparidade militar entre Venezuela e Guiana, e dados os investimentos em exploração de petróleo na Guiana feitos por empresa estadunidense, a Guiana recorreu aos EUA para “equilibrar” o jogo militar com a Venezuela.
Em um mundo turbulento em que o Brasil e a América do Sul se ofereciam no cenário internacional como uma “região de paz” (apesar de que qualquer observador mais atento lembrará rapidamente de questões de fronteira ao longo das últimas décadas entre Chile e Argentina, Argentina e Inglaterra, Chile e Bolívia, Peru e Equador, e por aí vai), o conflito não apenas pode sepultar essa imagem, como a integração regional sul-americana. Daí os movimentos recentes e intensos do governo brasileiro. Que o Brasil ajude a resolver o litígio, tão próximo, de forma pacífica, não é apenas um interesse internacional, vendo o país como liderança regional e um mundo já repleto de conflitos de difícil administração. É, mais que tudo, interesse do próprio Brasil.
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
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